segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Quadro comparativo do CPC

Link da Camâra dos Deputados com resumo comparativo do Codigo de Processo Civil e o Projeto n. 8.046/2010:

http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/54a-legislatura/8046-10-codigo-de-processo-civil/arquivos/quadro-comparativo-do-cpc-atual-e-pl-8.046-11

Prazo de prescrição conta a partir da ciência do dano


As relações trabalhistas geram, ao longo do tempo de sua subsistência, direitos e deveres recíprocos para empregadores e empregados. Nesse sentido, a Constituição Federal elenca diversos direitos fundamentais das partes dessa importante relação jurídica, sendo o tempo um fator gerador e extintivo de direitos.
Em homenagem à segurança jurídica e à estabilidade das relações, o ordenamento jurídico brasileiro exige que, uma vez violado o direito de alguma das partes, a pretensão reparatória seja exercida dentro de um prazo. Esgotado o tempo disponibilizado sem que o titular aja, o direito exige que a situação se estabeleça de modo perene, como forma de atribuir segurança e garantias às pessoas envolvidas.
Prescrição é a extinção da pretensão pelo não exercício do direito de ação respectivo dentro do prazo fixado em lei. A decadência, por seu turno, é a extinção do direito material pela inércia do titular em constituí-lo.
Nada obstante o decurso do prazo prescricional implicar o perecimento do direito de ação, o direito material propriamente dito permanece inalterado, podendo ser cumprido através da livre manifestação da parte devedora, por exemplo. O credor perde, apenas, o direito de demandar judicialmente a reparação de seu direito violado.
No caso da decadência, por outro lado, há a perda do próprio direito material, o que ensejaria a improcedência de eventual ação proposta pelo titular inerte, sendo essa a distinção básica entre os dois institutos que visam à garantia da segurança e da estabilidade das relações jurídicas.
Na esfera das relações obrigacionais comuns, o Código Civil prevê, em seus artigos 205 e 206, diversos prazos prescricionais, tratando especificamente de diversas situações cotidianas, como a pretensão do segurado contra o segurador ou a de haver o pagamento de títulos de crédito. Há, também, a fixação de um prazo comum de 10 (dez) anos para as demais situações não contempladas de forma concreta.
No caso das relações trabalhistas, a Constituição Federal tratou de estabelecer, em seu art. 7º, inciso XXIX, a prescrição do direito de ação quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXIX — ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho; (...).
A regra trabalhista se encontra em perfeita consonância com a norma do artigo 189 do Código Civil, aplicado de modo subsidiário ao direito do trabalho por força de expressa previsão no artigo 8º, parágrafo único, da CLT. Ou seja, o prazo quinquenal ordinário visa à estabilidade das relações trabalhistas, assim como prazo bienal pressupõe que as lesões aos direitos laborais tiveram fim com o término do contrato de trabalho.
Contudo, situação peculiar ocorre quando a parte da relação empregatícia apenas tem conhecimento da lesão ao seu direito em momento posterior à rescisão contratual. Sendo assim, prevalece a norma constitucional de modo inflexível, contado o prazo bienal prescricional desde o deslinde do contrato?
Em um caso hipotético, baseado em demanda concreta enfrentada na militância da advocacia laboral, um empregador teve ciência dos desfalques e das ilicitudes cometidas por um ex-empregado apenas seis meses após a sua saída. Enquanto o trabalhador esteve na empresa, conseguiu esconder os desvios de recurso, mas, com seu desligamento, indícios da fraude surgiram, dando ensejo a uma investigação interna que culminou com a comprovação do furto do dinheiro patronal.
Assim, a contagem do prazo prescricional da ação reparatória de danos a ser proposta pelo empregador deve ter início com a rescisão do contrato ou a ciência inequívoca posterior deve ser o marco inicial da contagem do prazo da prescrição do direito de ação respectivo?
Sem dúvidas, considerar o início do prazo prescricional a data da rescisão do contrato é privilegiar a fraude e o formalismo em detrimento da razoabilidade, da boa fé e do resgate da legalidade das relações.
Margeando o debate acerca de qual prazo prescricional deva ser aplicado por questão de foco e didática — artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil ou artigo 7º, inciso XXIX, da Constituição Federal[1], é importante registrar o que dispõe o artigo 189 do Código Civil, repita-se, aplicado de forma subsidiária às relações trabalhistas por força do artigo 8º, parágrafo único, da CLT:
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.
Desse modo, é certo que a pretensão de reparação do titular nasce com a violação do direito. O direito de propor a ação reparatória apenas surge, contudo, da ciência da lesão, pois antes não há que se falar em direito subjetivo violado.
Esse é o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, interpretando o dispositivo do Código Civil em questão quanto à sua aplicabilidade a pretensões reparatórias por incapacidade laboral, editou e publicou a Súmula 278, que afirma, ipsis litteris:
Súmula nº 278 do STJ. Termo Inicial - Prazo Prescricional - Ação de Indenização - Incapacidade Laboral. O termo inicial do prazo prescricional, na ação de indenização, é a data em que o segurado teve ciência inequívoca da incapacidade laboral. (DJ 16/6/2003).
Em consonância com o entendimento sumulado do STJ, o Conselho da Justiça Federal emitiu, em decorrência da I Jornada de Direito Civil, o Enunciado 14, que assim dispôs:
Enunciado nº 14 do CJF: Art. 189: 1) o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art. 189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer.
Verifica-se, portanto, que no seio da Corte Superior em questão, dúvida não há que, em consonância com o princípio da actio nata, a pretensão reparatória surge com a ciência inequívoca da lesão, sendo essa o marco inicial da contagem do prazo prescricional. O Supremo Tribunal Federal possui entendimento análogo, conforme se extrai da sua Súmula 443, in verbis:
Súmula nº 443 do STF. Prescrição das Prestações Anteriores ao Período Previsto em Lei – Inocorrência. A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre, quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado, ou a situação jurídica de que ele resulta. (01/10/1964 - DJ de 8/10/1964, p. 3645; DJ de 9/10/1964, p. 3665; DJ de 12/10/1964, p. 3697)
Sendo assim, para o caso hipotético proposto, conclui-se que o prazo prescricional da pretensão reparatória do empregador que, apenas seis meses depois do desligamento do empregado teve ciência dos desfalques, tem sua contagem iniciada apenas no momento da sua ciência inequívoca dos danos patrimoniais.
Há, inclusive, jurisprudência pacífica no seio do Tribunal Superior do Trabalho (TST) acerca da aplicação do princípio da actio nata aos processos trabalhistas, in litteris:
PRESCRIÇÃO. ACIDENTE DE TRABALHO. DOENÇA OCUPACIONAL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. O fato de as indenizações por dano patrimonial, moral, inclusive estético, serem efeitos conexos do contrato de trabalho (ao lado dos efeitos próprios deste contrato) atrai a submissão à regra do art. 7º, XXIX, da Carta Magna. Independentemente do Direito que rege as parcelas (no caso, Direito Civil), todas só existem porque derivadas do contrato empregatício, submetendo-se à mesma prescrição. Entretanto, em face da pletora de processos oriundos da Justiça Comum Estadual tratando deste mesmo tipo de lide, remetidos à Justiça do Trabalho, tornou-se patente a necessidade de estabelecimento de posição interpretativa para tais processos de transição, que respeitasse as situações anteriormente constituídas e, ao mesmo tempo, atenuasse o dramático impacto da transição. Assim, reputa-se necessária uma interpretação especial em relação às ações ajuizadas nesta fase de transição, sob pena de se produzirem injustiças inaceitáveis: a) nas lesões ocorridas até a data da publicação da EC nº 45/2004, em 31.12.2004, aplica-se a prescrição civilista, observado, inclusive, o critério de adequação de prazos fixado no art. 2.028 do CCB/2002. Ressalva do Relator que entende aplicável o prazo do art. 7º, XXIX, CF, caso mais favorável (caput do art. 7º, CF); b) nas lesões ocorridas após a EC nº 45/2004 (31.12.2004), aplica-se a regra geral trabalhista do art. 7º, XXIX, CF/88. Frise-se que a prescrição é instituto jurídico que solapa direitos assegurados na ordem jurídica, inclusive oriundos da Constituição, ao lhes suprimir a exigibilidade judicial. O seu caráter drástico e, às vezes, até mesmo injusto, não permite que sofra qualquer interpretação ampliativa. Desse modo, qualquer regra nova acerca da prescrição, que acentue sua lâmina mitigadora de direitos, deve ser interpretada com restrições. Em consequência, a regra prescricional mais gravosa só produzirá efeitos a partir do início de sua eficácia, não prejudicando, de modo algum, situações fático-jurídicas anteriores. Ademais, em se tratando de acidente de trabalho e doença ocupacional, pacificou a jurisprudência que o termo inicial da prescrição (actio nata) dá-se da ciência inequívoca do trabalhador no tocante à extensão do dano (Súmula 278/STJ). Existem precedentes nesta Corte no sentido de que, se o obreiro se aposenta por invalidez, é daí que se inicia a contagem do prazo prescricional, pois somente esse fato possibilita a ele aferir a real dimensão do malefício sofrido. Por coerência com essa ideia, se acontecer o inverso e o empregado for considerado apto a retornar ao trabalho, será da ciência do restabelecimento total ou parcial da saúde que começará a correr o prazo prescricional. Na hipótese, o Regional consignou que o Reclamante sofreu o acidente em 17/5/1999, percebeu auxílio doença acidentário entre 2/6/1999 e 14/12/1999 e foi dispensado em 3/6/2003, quando ainda estavam presentes as sequelas oriundas do acidente. Tendo sido a ação ajuizada em 26/01/2005, não foi ultrapassado o prazo prescricional. Recurso de revista não conhecido, no aspecto. (TST – RR 139100-08.2005.5.09.0005 – Terceira Turma; julgado em 21/11/2012, Rel. Min. Maurício Godinho Delgado)
"RECURSO DE EMBARGOS REGIDO PELA LEI 11.496/2007. PRESCRIÇÃO DE NATUREZA TRABALHISTA. DANOS MORAL E MATERIAL DECORRENTES DE DOENÇA OCUPACIONAL. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ EM 26/02/2002 E AJUIZAMENTO DA AÇÃO EM 26/02/2007. Discute-se o marco prescricional para pleitear direito à indenização por danos moral e material, decorrente de doença profissional, equiparada a acidente de trabalho, ocorrida antes da promulgação da Emenda Constitucional 45/2004... Sabe-se que o direito positivo pátrio alberga a teoria da actio nata para identificar o marco inicial da prescrição. Com efeito, a contagem somente tem início, em se tratando de acidente de trabalho e doença ocupacional a partir do momento em que o empregado tem ciência inequívoca da incapacidade laborativa ou do resultado gravoso para a saúde física e/ou mental, e não simplesmente do surgimento da doença ou de seu agravamento, nem mesmo do afastamento. É que não se poderia exigir da vítima o ajuizamento da ação quando ainda persistiam dúvidas acerca da doença e sua extensão, a possibilidade de restabelecimento ou de agravamento. Assim, o março inicial para a contagem do prazo prescricional é a aposentadoria por invalidez, pois, a partir daí, houve a confirmação da incapacidade laborativa. Logo, se a aposentadoria por invalidez ocorreu em 26/02/2002, o quinquídio se encerrou no exato dia do ajuizamento da ação, ou seja, em 26/02/2007, não se operando a prescrição, conforme entendimento adotado pela Turma de origem. Precedentes: E-ED-RR-52341-40.2006.5.18.0010; E-RR-29400-70.2006.5.04.0662. Recurso de embargos conhecido e não provido." (E-RR-16500-03.2007.5.13.0005, Rel. Min. Augusto César Leite de Carvalho, DEJT de 2/3/2012).
DANO MORAL. "LISTA NEGRA". PRAZO PRESCRICIONAL. TERMO INICIAL.Ao contrário do que aduz a parte, a egrégia Corte Regional aplicou ao caso a prescrição trabalhista, prevista no artigo 7º, XXXIX, da Constituição Federal, e não a prescrição civil, razão pela qual tal argumentação mostra-se inócua. Por outro lado, acerca do termo inicial do dano moral trabalhista, esta Corte pacificou entendimento de que a contagem do prazo prescricional se inicia com a data em que ocorreu o dano ou aquela em que o empregado teve ciência inequívoca da lesão. No presente caso, a egrégia Corte, com base na análise do suporte fático probatório produzido nos autos, em especial, na prova testemunhal, consignou que a reclamante somente tomou conhecimento da "existência da lista em outubro/2009, por comentários de terceiros, embora seu nome tenha sido inserido em 02.07.1996."Tal suporte fático, é imutável pelo que dispõe a Súmula nº 126.
Assim, tendo a reclamação sido apresentada em 16.04.2010, não há falar em prescrição. (TST - RR-577-73.2010.5.09.0091 – Quinta Turma; julgado em 12/12/2012, Rel. Min. Caputo Bastos)
É importante registrar, por fim, que cabe ao interessado — in casu, o empregador — demonstrar que teve ciência inequívoca da lesão patrimonial em momento posterior ao término do contrato. A presunção milita em desfavor do empresário no caso hipotético sob enfoque.
No entanto, uma vez comprovado nos autos da demanda reparatória que o conhecimento dos fatos ocorreu em momento posterior à rescisão contratual, o prazo prescricional deve ser contado a partir do nascimento da pretensão reparatória do direito subjetivo violado, ou seja, quando a empresa tomou ciência do desvio de valores de sua titularidade.

[1] PRESCRIÇÃO. DANO MORAL E MATERIAL TRABALHISTA. 1. O prazo de prescrição do direito de ação de reparação por dano moral e material trabalhista é o previsto no Código Civil. 2. À Justiça do Trabalho não se antepõe qualquer obstáculo para que aplique prazos prescricionais diversos dos previstos nas leis trabalhistas, podendo valer-se das normas do Código Civil e da legislação esparsa. 3. De outro lado, embora o dano moral trabalhista encontre matizes específicos no Direito do Trabalho, a indenização propriamente dita resulta de normas de Direito Civil, ostentando, portanto, natureza de crédito não-trabalhista. 4. Por fim, a prescrição é um instituto de direito material e, portanto, não há como olvidar a inarredável vinculação entre a sede normativa da pretensão de direito material e as normas que regem o respectivo prazo prescricional. 5. Recurso de revista conhecido e provido. TST – RR 816.544/01.4 – Primeira Turma, julgado em 10/05/2006, DJ 16/06/2006, Rel. Min. João Orestes Dalazen. (precedentes RR-670/2004-002-17-00.8, RR-1261/2003-202-04-40.0, RR-1162/2002-014-03-00.1)
Renato Melquíades de Araújo é advogado, sócio do escritório Martorelli Advogados. É formado pela Universidade Federal de Pernambuco, especialista em Direito e Processo do Trabalho e em Direito de Empresa.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2013

Limitar o acesso à Justiça para ampliar os direitos


A expansão das atividades do Judiciário nos últimos anos, impulsionada por diversos fatores, elevou sobremaneira o número de ações ajuizadas. O acréscimo do número de demandas também acarretou a criação de mais órgãos jurisdicionais e cargos de juízes e servidores. A equação orçamentária dos tribunais não pode desprezar o fator da sobrecarga em ter mais juízes, servidores, estruturas e por certo ferir o equilíbrio econômico financeiro da gestão, sem falar na responsabilidade fiscal prevista na legislação. A administração da Justiça que se coadune com tempos democráticos e contemporâneos precisa ousar, a partir de princípios inovadores e criativos, para implantar novas formas de administração e reinventar as velhas sob novas roupagens, sempre pautados pela interação com todos os agentes do sistema judicial, sem descurar da ampliação da participação social.
Na tese de doutorado que defendi na Universidade de Coimbra (A interação entre Tribunais e Democracia por meio do acesso aos direitos e à justiça), após uma análise aprofundada dos tribunais e democracia, especialmente na América Latina, e dos meios e formas de acesso aos direitos e à Justiça, bem como da análise de experiências empíricas dos juizados especiais federais brasileiros, apontei pistas que podem ser utilizadas para alterar os padrões de litigação nos juizados especiais federais brasileiros. De certa forma, ressalvadas algumas particularidades da especialização de cada órgão jurisdicional, as palavras aqui ditas se aplicam a todas as esferas do Judiciário.
De acordo com o estudo, na Justiça Federal os resultados das ações dos juizados especiais federais modificaram a procura e o desempenho dos tribunais e contribuíram para o aumento dessa procura, a diminuição do desempenho e a sobrecarga de processos e trabalho. Atualmente, o número de demandas propostas nos juizados especiais federais é superior aos números totais das demais demandas ajuizadas nas demais unidades jurisdicionais da Justiça Federal, incluídas as ações penais e os executivos fiscais. O quantitativo numérico expressa uma mudança no padrão de litigação na Justiça Federal brasileira. Nos juizados especiais analisados, as expectativas sociais e o patamar de exigências dos cidadãos aumentaram, assim como a procura pelos órgãos jurisdicionais. De outro lado, os resultados decaíram, principalmente, em grau recursal, e não são os mesmos do início.
Questiona-se o número elevado de processos. Haveria excessos? Não seria o caso de limitar, restringir ou diminuir o número de demandas (inconsistentes) diante de um número exacerbado de processos? Com o tempo e a estrutura de trabalho poupados não seriam melhor atendidas as demais demandas?
As respostas a essas indagações são retiradas da análise da investigação e revelam aparente, apenas aparente, paradoxo: limitar o número de demandas para ampliar o acesso aos direitos e à Justiça.
A primeira constatação é a de que os tribunais e os outros órgãos do sistema de justiça brasileiro, inclusive os juizados especiais federais, absorvem demandas que não são propriamente de sua alçada, mas pela sistemática atual são solucionadas pelos juizados.
O motivo principal é a substituição da atividade administrativa pela judicial, devido a dois fatores: a) a diversidade de critérios de interpretação da legislação utilizados nas vias administrativas e judiciais (mais benéfico nos tribunais); b) após a análise do pedido, na via administrativa, nos casos de indeferimento, as pessoas procuram os juizados como uma segunda oportunidade de ter deferido seu pedido (praticamente não há ônus nem restrições para ajuizar uma demanda nos juizados especiais).
Em segundo lugar, reduzir o número de demandas (com ênfase nos processos inconsistentes ou desnecessários) dos tribunais também faz parte da solução do problema da sobrecarga. Decidir entre o ajuizamento ou não de uma demanda judicial significa, em última análise, sopesar prós e contras e ponderar riscos e probabilidades, custos e benefícios, em face dos possíveis resultados finais (o desconhecimento e a desinformação, além de impedirem o ajuizamento de demandas, também contribuem para o ajuizamento de ações infundadas). Se não há riscos nem contrariedades (ou eles são mínimos), como no caso dos juizados especiais, resta evidente que a alternativa do ajuizamento sempre será escolhida e a análise prévia das adversidades não é sopesada devido à ausência ou o baixo custo da litigação. A consequência é a sobrecarga de processos nos juizados especiais federais e as demandas infundadas (improcedentes) retiram espaço para o processamento e julgamento das demais demandas. De outro lado, a ausência ou a deficiência de análise prévia de viabilidade de ajuizamento por um advogado, defensor público e/ou servidor do setor de atermação dos juizados, inviabiliza que sejam acionados os filtros de demandas infundadas, essenciais à administração da Justiça.
Um terceiro ponto averiguado na investigação, na esteira da redução do número de demandas, relaciona-se à litigância produzida ou não evitada pelos órgãos administrativos. A ausência do cumprimento espontâneo das obrigações estatais, pela via administrativa (Executivo), principalmente nos casos com decisões já pacificadas, obriga as partes a acionarem os tribunais. De outro lado, o desrespeito aos direitos por equívocos e os erros nos serviços prestados por agentes dos poderes públicos também contribuem para o aumentam do número de demandas judicializadas.
A excessiva e abusiva utilização da via judicial nos juizados especiais ainda decorre da racionalidade econômica das partes envolvidas no conflito. De um lado, os litigantes frequentes, que auferem vantagens econômicas ao desrespeitar direitos e deixá-los para eventual acertamento na via judicial, em face dos obstáculos de ordem extraprocessual (desinformação, desconhecimento, hipossuficiências, resignação) e processual (morosidade, insuficiência de defesa técnica, litigação individualizada). Noutro lado, as despesas suportadas individualmente pelos litigantes são irrisórias ou diminutas, em face da gratuidade processual e da ausência de ônus financeiro com a demanda. Assim, qualquer expectativa de ganho (chance de sucesso), por mínima que seja, faz com que o agente com comportamento racional opte pela propositura de uma ação judicial. Há ainda uma parcela de demandas que estão num plano intermediário e o difícil é encontrar parâmetros precisos do que é ou não abusivo, sem obstruir o acesso aos direitos e à justiça.
Por fim, a redução do acesso aos tribunais para o aumento do acesso aos direitos e à Justiça está diretamente relacionada ao tipo de litigação predominante no sistema processual brasileiro e nos juizados especiais, ou seja, a litigação individualizada. A preferência pela litigação individual não se coaduna com os anseios das sociedades democráticas contemporâneas nem com os sistemas judiciais emancipatórios. A predominância da litigação individual, por meio do funcionamento sistêmico, subterrâneo, oculto, não dito ou não pensado, vai, gradualmente, produzir o silenciamento de formas coletivas de resolução de conflito. A litigação individual inviabiliza a efetiva prestação jurisdicional, enquanto que a litigação coletiva, não valorizada, poderia solucionar um contingente expressivo de demandas individuais que deixariam de ser ajuizadas. Trata-se, sobretudo, de racionalização do sistema judicial para que as demandas com o mesmo substrato casuístico e jurídico tenham decisões judiciais não diferenciadas, cumpridas indistintamente para todos e não somente para aqueles privilegiados que recorrem individualmente aos tribunais.
A atomização das ações em demandas individuais é um óbice no atual estágio do sistema jurídico brasileiro. Sem avanços concretos na área legislativa e judiciária, para impulsionar o rompimento de paradigmas sedimentados desde a formação do processo civil brasileiro, será difícil o cidadão deixar de recorrer individualmente aos tribunais para assegurar os seus direitos. Ademais, a interferência negativa da legislação processual, em diversos aspectos, também é responsável pela proliferação de demandas infundadas e inconsistentes.
Esses fatores, somados, acabaram por movimentar indevidamente ou desnecessariamente os tribunais e os sobrecarregam. Nesses casos, é preciso limitar o acesso aos tribunais, para ampliar o acesso aos direitos e à Justiça.
O que fazer para limitar e ampliar? Fomentar uma nova concepção de acesso aos direitos e à Justiça voltada para a integração entre os órgãos de poder, com as entidades públicas, privadas e os movimentos sociais, com o objetivo de diminuir o número de demandas que não necessitariam ingressar nos tribunais, pois são melhores solucionados na via administrativa ou por outras formas de resolução de conflito. Nesse sentido, os juizados especiais federais demonstraram que é possível alterar os padrões tradicionais de prestação jurisdicional, contudo, é preciso avançar, principalmente para a inserção de meios de defesa coletivos dos direitos, e propagar experiências criativas e inovadoras que transformem os sistemas judiciais.
Para concluir, as sociedades democráticas contemporâneas são marcadas por um futuro de possibilidades plurais e concretas, simultaneamente utópicas e realistas, na esteira da sociologia das emergências (Santos, 2006: 108). Os juizados especiais federais cíveis brasileiros abriram possibilidades plurais, concretas, alternativas e viáveis de um novo formato de prestação jurisdicional, bastando aos cidadãos, operadores e utilizadores dos juizados especiais desvendarem as alternativas que cabem no horizonte para tornarem realidade as utopias e sonhos, sobretudo, para aperfeiçoar e construir uma nova concepção para o acesso aos direitos e à Justiça e um novo formato de administração da Justiça.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2006). A gramática do tempo para uma nova cultura política: para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, 4. São Paulo: Editora Cortez.
______ (2010, Outubro 2). Diário Econômico.
Antonio César Bochenek é juiz federal de Ponta Grossa (PR), presidente da Associação Paranaense de Juízes Federais e diretor do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus). Mestre e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de janeiro de 2013. 

Todos temos duas culturas: a nossa e a americana


Uma guerra mundial pelo conteúdo dos meios de comunicação se trava pela conquista do público dentro e fora dos países criadores. Batalhas se desenrolam pelo domínio da notícia, do formato de programas de TV e pela exibição de filmes, vídeos, música, livros. Nesta disputa, um gigante domina: os Estados Unidos, com sua capacidade de produzir cultura de massas que agrada ao grande público em todos os continentes. Só com cinema Hollywood recebe pelo mundo US$ 40 bilhões ao ano. Essa penetração cultural americana, que muitos críticos preferem chamar de imperialismo, leva os filmes, a música e a televisão dos Estados Unidos para o mundo. Sua arma é o inverso da alta cultura, da contracultura, da subcultura, de nichos especializados. Visa o público em geral, cultura de massa, de milhões. Tornou-se a cultura internacional dominante, principal, a chamada mainstream conforme o título do livro escrito pelo convidado do Milênio, o sociólogo francês Frédéric Martel. Ele é também professor universitário em Paris e apresentador do principal programa de informação da rádio Francesobre as indústrias criativas e os meios de comunicação. Para escrever Mainstream, ele percorreu 30 países durante cinco anos, entrevistou mais de 1.200 pessoas em todas as capitais do entertainment, analisou a ação dos protagonistas, a lógica dos grupos e acompanhou a circulação internacional de conteúdo.

Silio Boccanera — Seu livro, “Mainstream: a Guerra Global das Mídias e das Culturas”, fala da dominância americana na cultura de massa no mundo. Os EUA são o gigante mundial na produção de cultura de massa que agrada as pessoas, o público, mundo afora, de música a filmes, programas de TV, tudo isso. Por que os EUA? Por que não a Europa?
Frédéric Martel —
 É uma boa pergunta, e como francês, eu ficaria feliz de dizer que a Europa também, e a França. Mas não é o caso. Ao menos, não mais. Por quê? Há muitas explicações. Mas, para dar uma resposta rápida a uma pergunta longa, eu diria, em primeiro lugar, pelo poder da indústria do entretenimento nos EUA, toda a diversidade e como ela engloba não só os EUA, como país, e o continente americano, como o mundo todo, em miniatura. Em terceiro lugar, a experimentação, a pesquisa e o desenvolvimento, a crença nas universidades, em setores sem fins lucrativos, nas comunidades. Todas essas coisas que basicamente criam uma energia, vários tipos de histórias, e daí por diante. Então o mercado usa isso para criar uma cultura dominante.
Silio Boccanera — Mas eles atingem o mundo todo, não só o mercado americano. O que você está dizendo é que o mercado americano...
Frédéric Martel —
 Já é o mundo. Exato, é uma amostra do mundo. São 44 milhões de latinos, 38 milhões de negros, 14 milhões de asiáticos. Então, a segunda maior cidade da Grécia, da Mongólia, de muitos países fica nos EUA. A população iraniana em Los Angeles é maior do que em qualquer lugar. A comunidade judaica de lá é a segunda do mundo. E daí por diante. Então, há grandes comunidades, de vários países, e, se um filme, um livro, uma música, faz sucesso nos EUA, ela é capaz de falar ao mundo.
Silio Boccanera — E eles usam seus mecanismos, sua capacidade de distribuição...
Frédéric Martel —
 Exato. Eles têm a capacidade de ser originais, novos, desafiadores, diferentes... Eles são capazes de produzir cultura em diferentes escalas. Eles fazem o produto de massa, o entretenimento... De Lady Gaga a “Matrix”, de “Batman” a “Avatar” ou o mais recente “Homem-Aranha” etc. Esse é um aspecto. Mas eles também são muito bons na produção da contracultura, da subcultura, da cultura de elite. Na dança, por exemplo: de Trisha Brown a Martha Graham, de Bill T. Jones a Merce Cunningham. Eles são muito fortes. E você tem também a elite, a cultura dominante, a subcultura, mas também a cultura digital, como você disse. Da Apple ao Twitter, do Facebook àWikipedia. E eles criticam a si próprios e sua própria cultura. O imperialismo é exatamente isso. Não só a cultura dominante, mas também a subcultura, a cultura de elite, a cultura digital, a cultural das comunidades e essa maneira de criticar a própria cultura. Isso é o verdadeiro imperialismo.
Silio Boccanera — É um imperialismo diferente daquele político e militar. É uma espécie de imperialismo cultural que é bem recebido no mundo.
Frédéric Martel —
 É o que basicamente chamamos de soft powerSoft power significa influenciar as pessoas com coisas legais. Você é amigável, não é contundente. Você tem as forças armadas, tem a diplomacia tradicional e grandes empresas econômicas, que formar o hard power, e tem o soft power, que influencia as pessoas através de filmes, de livros, da internet e de valores. A liberdade de expressão, a capacidade de se tornar alguém, ainda que você venha de uma vizinhança ruim, como um gueto ou uma favela. Você pode, mesmo que seja negro, de se tornar presidente dos EUA. Isso também faz parte da história.
Silio Boccanera — Parte desse soft power que você descreveu. Por que os filmes americanos viajam o mundo todo? Isso se deve ao marketing e a outros elementos?
Frédéric Martel —
 É claro. O marketing, a força das indústrias de cultura e Hollywood, um setor privado que é um grande conglomerado, mas também graças ao apoio do Congresso e do governo dos EUA. Não esqueça que o governo americano, a MPAA (Motion Picture Association of America), que é basicamente, o lobby de Hollywood em Washington, também ajudam essa indústria. Mas, além disso, fazer um filme é algo muito caro. Fazer um blockbuster como “Avatar”, “Batman” ou “Homem-Aranha” custa mais de 300, 400, 500 milhões de dólares. Para um só filme. Pouca gente consegue dispor dessa quantia. Além disso, é algo profissional. Eles são capazes de lançar um novo filme em mais de 130 países, no mesmo dia, em 50 ou 60 idiomas diferentes. Poucos países são capazes de fazer isso.
Silio Boccanera — E como os países protegem a cultura nacional? Por que as culturas nacionais e regionais também são importantes. Há maneiras diferentes de fazer isso, como os chineses, por exemplo. Acho que você foi bem crítico no seu livro, sobre a maneira como os chineses tentam proteger sua cultura.
Frédéric Martel —
 Eu não sou a favor nem contra de ninguém. Não sou a favor ou contra os EUA, ou a China. Eu apenas tento ver como a coisa funciona. Na China, eles criaram a mais dura forma de censura a cotas. Apenas cerca de 20 filmes americanos podem entrar no mercado chinês por ano. E, quando um filme faz muito sucesso, como foi o caso de “Avatar” na China, eles o cortam e censuram, para não fazer tanto sucesso. Ainda assim, mesmo com essa maneira estranha de exercer a censura, os EUA conseguem mais de 50% das bilheterias na China. Já na Índia, por exemplo, praticamente não há censura, não há cotas, e os americanos podem promover o filme quiserem na Índia. Com sua fortíssima produção de Bollywood, em Mumbai, os indianos conseguem 80% das bilheterias, com filmes indianos, e a parcela americana é de menos de 10%. Então, cotas ou censura não funcionam, por nada.
Silio Boccanera — E o modelo francês? A França tem uma maneira especial de se preservar.
Frédéric Martel —
 É uma maneira diferente. Não temos cotas nem censura. Os americanos são bem-vindos a lançar o filme que quiserem. Mas nós oneramos os ingressos com uma taxa. Quando compra ingresso para qualquer filme, mesmo para um filme americano, você paga uma taxa de 11%, que vai para a indústria cinematográfica francesa, para ela promover e produzir filmes franceses. E, a propósito, em países como o Brasil, eu fico triste de dizer que a bilheteria dos filmes nacionais é muito pequena, provavelmente de 2% a 5%, não mais. Isso em um país onde se abre uma nova sala de cinema por dia. A pergunta para os brasileiros, que está relacionada à cultura dominante, é: “Vocês querem, abrindo mais salas de cinema, que as pessoas assistam apenas a filmes americanos ou vocês querem que elas assistam a mais filmes brasileiros?” É possível. É uma escolha do governo, é uma questão de regulamentação.
Silio Boccanera — Sempre houve uma percepção da cultura como dividida em duas: a cultura da elite, muito sofisticada e intelectual, que as pessoas normalmente associam à Europa, e a cultura de massa, dominada pelos EUA. Essa distinção faz sentido para você?
Frédéric Martel —
 Basicamente, você parece um francês dizendo isso, porque essa é a maneira francesa e, eu diria, a maneira europeia de pensar a cultura. A cultura de elite, que é boa, e a cultura de baixa qualidade, que é, basicamente, entretenimento e cultura de massa, que, no final, nós não apreciamos. Essa era uma maneira de pensar o mundo da cultura. Isso não funciona.
Silio Boccanera — Uma maneira europeia de pensar.
Frédéric Martel —
 E é como pensamos na Espanha, na Itália, na Alemanha. De Adorno a Hannah Arendt, de Benjamin a Horkheimer, para mencionar os mais famosos. Mesmo Umberto Eco. Figuras famosas, francesas, europeias. O mundo de hoje não pensa assim. Não porque não há hierarquia. É claro que há alguma hierarquia. Mas a hierarquia é o que você, como pessoa, crê e pensa. E, na verdade, videogames, filmes, seriados de TV, mangás, qualquer tipo de cultura popular, também podem ser arte. E, na verdade, vemos “Avatar” ou “Batman” como arte hoje em dia. O jazz era arte, e o rap também pode ser cultura. Essa ideia de hierarquia não funciona da mesma maneira. E é por isso que, na Europa, nós não conseguimos acompanhar o que acontece no mundo. E, nos EUA, eles viram rapidamente que essa hierarquia acabou. E por quê? Por causa do movimento dos direitos civis dos negros. Durante esse movimento, o jazz, a música da Motown, o soul e o rhythm & blues eram produzidos principalmente pelos negros. E, no final, era impossível dizer que a música negra era inferior. A música negra é cultura, também é arte. E, em um país como o Brasil, vocês entendem isso melhor do que eu, do que nós, porque, aqui, vocês têm diferentes classes e etnias capazes de produzir cultura de qualidade. É o fim da hierarquia ou, pelo menos, da hierarquia como a elite vê.
Silio Boccanera — E, nessa perspectiva crítica que, como você disse, é mais predominante na Europa e separa as culturas de elite e de massa, você vê algum sinal de fascínio pela cultura de massa americana? Eles criticam, mas gostam.
Frédéric Martel —
 É... Quer dizer, nós, como europeus, temos o mesmo tipo de relação que você, como brasileiro, tem com os EUA. Nós os amamos e odiamos. É uma complicada relação de amor e ódio. Nós esperamos que eles sejam como são, nós queremos criticá-los, mas, ao mesmo tempo, nós protestamos contra eles com tênis Nike nos pés. Nós trabalhamos para ser um pouco como eles, muito embora nós queiramos manter nossa identidade e cultura. E, a propósito, a boa notícia é que o debate no mundo hoje e no futuro não ser entre nós — brasileiros, franceses, europeus — e os americanos. Será entre todos nós. O que eu quero dizer é que hoje não há apenas dois povos: nós e os EUA. O mundo é muito mais complicado, com países emergentes, que serão fundamentais nesse novo jogo.
Silio Boccanera — A Columbia pertence a um grupo japonês, a Sony. A editora Random House pertence a um grupo alemão, Bertelsmann, e deve se fundir com a britânica Pearson. A Time Warner Books pertence à francesa Lagardère. Mas o que todas elas produzem não é típico desses países. O que todas fazem é um produto americano, não é?
Frédéric Martel —
 Na verdade, é por isso que se precisa ver novas maneiras de pensar. Foi por isso que escrevi este livro, Mainstream. As coisas estão muito diferentes de como eram antes. Nos anos 1950, todos acreditavam que quem possuísse os meios de produção tinha um impacto no conteúdo produzido. Mas não é assim que funciona. A Sony é dona da Columbia que fez “Homem-Aranha”, que não é, por nada, um filme japonês. Nós somos os maiores produtores... Ainda bem. Parabéns aos franceses. Nós somos os maiores produtores de videogames, porque temos a Activision, a Blizzard e a Ubisoft, que são algumas das gigantes da indústria de videogames. Mas todas produzem videogames do tipo americano e britânico. E o mesmo acontece com a Bertelsmann, que controla a Random House, que publicou O Código Da Vinci, que não tem nada de alemão. Você pode ser dono da empresa, o que é bom, pois lhe dá dinheiro, poder, de certa forma, mas isso não lhe dá soft power. Porque o conteúdo continuará tendo uma orientação de estilo americano e britânico.
Silio Boccanera — E qual é o papel do inglês, como língua, como elemento importante na imposição da cultura dominante?
Frédéric Martel —
 A língua é importante. Eu acredito — e essa é a principal conclusão do meu livro — que, no mundo em que estamos entrando, que reúne globalização e digitalização, a língua é importante. E eu acredito que a batalha, a luta, mesmo a guerra de conteúdo, será uma batalha a respeito da cultura nacional. Você pode ouvir Lady Gaga, gostar de “Avatar” e ler O Código Da Vinci, mas, no final das contas, a maior parte da cultura que você consome e ama, geralmente é nacional, local, regional, e não global. A cultura global é apenas uma pequena parte do que você gosta. Então, no final das contas, os americanos são os únicos a poder prover essa cultura dominante global, mas essa cultura dominante global continua pequena. Por quê? Porque a língua é muito importante, porque a identidade é muito importante. Quando você compra um livro de não ficção, quer saber o que acontece aqui, no seu país, e não na Coreia do Sul, por exemplo. Na Coreia do Sul você quer ouvir K-pop, que é a música pop coreana, e ver um drama coreano, e não ouvir uma música brasileira. Portanto, nós estamos em um mundo cada vez mais global, mas, ao mesmo tempo, a cultura ainda é e será muito nacional.
Silio Boccanera — Quando um produto estrangeiro entra, a cultura nacional permanece, mas esse produto tende a ser mais anglo-saxão. A música, por exemplo, é americana ou britânica.
Frédéric Martel —
 Para resumir as coisas, eu diria que todos temos duas culturas: a nossa e a americana. De certo modo é... Eu não fico feliz de dizer isso.
Silio Boccanera — Mas é a realidade.
Frédéric Martel —
 Eu preferia dizer que temos 50 culturas, mas não é verdade. Mas não se pode resumir dizendo que temos só a cultura americana, pois nós temos nossa própria cultura. E a própria cultura, no Brasil, em todas as cidades em que estive... Eu estive em Porto Alegre, em Recife, no Rio, em São Paulo e vi como as pessoas consomem músicas, novelas, programas de TV, publicidade e informações essencialmente brasileiras. E, às vezes, até a cultura local e regional. Eu acredito que a globalização e a digitalização, no futuro, serão cada vez mais diversificadas do que uniformes.
Silio Boccanera — Então, ao analisar filmes, televisão, livros, a mídia, você acha que o mundo digital já está mudando completamente? Vamos perder a velha maneira de fazer as coisas? Ou elas vão coexistir?
Frédéric Martel —
 A boa notícia é que a digitalização irá ganhar novas peças fundamentais no mundo. Eu acredito — e não digo isso só porque estou no Brasil — que, graças à internet, os chineses ficarão mais fortes, os indianos ficarão melhores, os árabes serão capazes de se expressar todos juntos.
Silio Boccanera — Para finalizar, eu acho que devemos nos concentrar no seguinte aspecto: a cultura dominante irá enfrentar uma concorrência maior do que nunca após tantos anos de predomínio dos EUA? Você acha que outros países estão indo na mesma direção?
Frédéric Martel —
 Para resumir, eu diria que os EUA continuarão sendo peça importante da guerra de conteúdo, podemos dizer, nos próximos anos e décadas. Eu não acredito e não compro a ideia do declínio da cultura americana. Eu acho que eles são fortes e continuarão sendo fortes. Mas eles não são os únicos no jogo. Agora temos os países emergentes, que estão emergindo não só demográfica e economicamente, como pensávamos. E eu fui um dos primeiros a mostrar que eles estão emergindo com sua cultura, sua mídia e com a internet. Nesse mundo, a internet pode ser uma peça importante, e ela é uma ferramenta que permite que as pessoas... O Brasil, por exemplo, vai crescer com a internet, com certeza. E foi por isso que eu passei um tempo recentemente no Viva Favela, com o pessoal do centro de inclusão digital. No Recife, eu estive com o pessoal do Porto Digital. Eu também conversei com o pessoal do projeto C.E.S.A.R. etc. Toas essas pessoas estão tentando criar ferramentas inovadoras de alfabetização etc. em comunidades, em favelas, em lugares onde as pessoas não têm acesso a uma livraria ou biblioteca. Mas elas terão acesso à internet em lan houses, por exemplo, e mesmo no telefone. Hoje, todo mundo tem um telefone celular barato. Mesmo na África, todos têm celulares com funções básicas. Em cinco anos, todos terão um smartphone, pois os preços estão caindo muito. Assim, todos poderão acessar a internet pelo smartphone. Se você tem acesso à internet, pode baixar livros, acessar a rede, poder ver filmes e daí por diante. A questão não é se essa tecnologia é boa. A questão é: ela não será boa ou ruim sozinha. Ela será o que você, o povo, o governo deste país e nós formos capazes de fazer com ela, criando uma boa internet e uma maneira melhor de ter acesso ao conteúdo através da internet.
Silio Boccanera — Ótimo. Obrigado.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de janeiro de 2013. 

Decisão sobre bancas estrangeiras gera fim de parceria


No segundo semestre de 2012, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil reafirmou o veto à atuação de bancas estrangeiras no Brasil. A decisão da Ordem ao analisar consulta apresentada pelo Centro de Estudos de Sociedades de Advogados (Cesa) sobre os limites éticos da cooperação e associação entre sociedades de consultores estrangeiros e escritórios brasileiros manteve o entendimento vigente, mas acabou por alterar o mercado da advocacia: o Lefosse Advogados — um dos cinco grandes escritórios brasileiros com acordo de cooperação com escritórios de outros países — começa 2013 sem a parceria com o gigante global Linklaters.
Nas outras quatro grandes bancas com parcerias — Trench, Rossi e Watanabe Advogados, associado ao Baker & Mackenzie; Tauil & Chequer, associado ao Mayer Brown; Campos Mello, associado ao DLA Piper; e Dias Carneiro, associado ao Uria Menéndez — tudo se mantém como antes.
A decisão do Lefosse foi tomada com base no trecho do acórdão da OAB, que diz que a “associação entre sociedades de consultores em direito estrangeiro e sociedades nacionais somente pode acontecer se houver respeito ao Provimento 91/2000, por isso só pode acontecer em caráter eventual e não pode alcançar matéria de direito brasileiro, seja em consultoria, seja em procuratório judicial”. Para Geraldo Lefosse, sócio que dá nome à banca, a interpretação que se pode tirar do documento é que as relações de cooperação não podem mais ser permanentes.
Segundo o escritório, foi uma mudança no entendimento que estava firmado até então pelo Conselho Federal da Ordem, que acompanhou o entendimento mantido pela OAB de São Paulo. “Depois que verificamos o entendimento de São Paulo, acendeu um sinal amarelo e começamos a tomar providências para um eventual término da relação, para que não sofrêssemos com problemas de caráter operacional ou com clientes”, explica Lefosse.
A parceria com o Linklaters vinha de longa data. Iniciada em 2001, tinha como função ajudar o Lefosse, criado em 1986, a se institucionalizar após a saída de dois sócios do escritório. A troca foi além da representação de clientes europeus no Brasil e brasileiros na Europa. A formação dos advogados e os atrativos para que eles fossem trabalhar no Lefosse tiveram ganhos inegáveis, como, por exemplo, um plano de carreira bem definido, no qual o recém-contratado pode enxergar até onde pode chegar dentro do escritório.
Com o tempo, a banca “importou” a expertise do gigante em gestão de escritório, implantando plano de carreira com avaliações que privilegiam a meritocracia e fazendo intercâmbio de seus advogados para estudar nos cursos oferecidos pelo Linklaters e trabalhar em operações internacionais, por exemplo.
O Lefosse conta hoje com 100 advogados e tem trabalhado em grandes operações. É esperado que a relação de amizade — e a indicação de clientes entre os escritórios — se mantenha. No mercado, porém, cogita-se que a parceria já estava sendo mais custosa do que lucrativa para o Lefosse, uma vez que sua carteira de clientes tem sido ocupada, cada vez mais, por grandes players brasileiros.
Posição mantidaA interpretação da decisão da OAB feita pelo Lefosse para anunciar o fim da parceria parece exagerada aos olhos de Ivan Tauil, sócio do Tauil & Chequer Advogados. Tauil explica que, por mais que durante a deliberação tenha se falado das parcerias, a decisão diz, em sua parte dispositiva, apenas que se mantém inalterado o Provimento 91 da OAB.
O provimento dispõe sobre o exercício da atividade de consultores e sociedades de consultores em direito estrangeiro no Brasil e já estava em vigor desde o ano 2000. “Todas as sociedades que têm parceria aqui funcionaram por anos sem que nenhuma tenha ido contra o Provimento 91. Como a OAB manteve a orientação, não há necessidade de mudança nas parcerias que já estão estabelecidas”, diz Ivan Tauil.
O Trench, Rossi e Watanabe, que mantém há 50 anos parceria com o Baker & McKenzie, tem o mesmo entendimento que Tauil sobre a decisão da OAB. “Este acordo já foi examinado e aprovado pela OAB no passado, quando o escritório teve reconhecida sua situação diferenciada, operando apenas com advogados brasileiros, de forma independente”, diz a banca, por meio de nota.
O escritório diz reafirmar seu compromisso “assumido e mantido durante mais de cinco décadas” de atuar de acordo com as normas éticas e legais estabelecidas pela OAB.
Também não há notícias sobre mudanças no Dias Carneiro e no Campos Mello.
FONTE: texto de Marcos de Vasconcellos, editor da revista Consultor Jurídico. Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2013. 

Advogada pode participar de programas de rádio em SC

O presidente da Comissão de Fiscalização da OAB catarinense violou o princípio da liberdade de expressão e de informação, previsto no artigo 5º da Constituição e em seus incisos IV e IX, ao proibir que uma advogada participe de programas de rádio em Blumenau. Afinal, todos são iguais perante a lei, sendo livre a manifestação do pensamento e a expressão da atividade intelectual.

Com esta linha de entendimento, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região negouApelação interposta pela OAB-SC. Ela foi ao TRF-4 por estar inconformada com sentença da 1ª Vara Federal de Florianópolis, que garantiu a participação da advogada num programa de rádio em Blumenau.
O acórdão foi proferido por unanimidade, na sessão de julgamento ocorrida dia 16 de janeiro. O relator foi o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Ainda cabe recurso.
O juiz federal Marcelo Krás Borges afirmou que a sanção aplicada à associada não encontra respaldo em previsão legal, ‘‘assistindo razão à impetrante ao afirmar que a Comissão da OAB/SC extrapolou os limites como órgão fiscalizador, em decisão que restringiu suas liberdades e direitos individuais’’.
A respeito dos artigos 32 e 33 do Estatuto da Advocacia — que regula o comportamento do advogado perante os veículos de comunicação —, estes devem ser interpretados de maneira restritiva, de modo a não ferir os direitos fundamentais.
‘‘Dispõe a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica) que direitos como a Liberdade de Expressão somente podem ser restringidos se houver expressa previsão legal e desde que contrariem a segurança nacional, ordem pública saúde ou moral pública, tal sua importância para a sociedade’’, afirmou ele.  
O caso
Inscrita na OAB-SC desde 2007 e com atuação na área da Seguridade Social, a advogada vinha participando, como convidada, do Programa ‘‘Previdência Hoje’’, que vai ao ar toda às terças-feiras, às 9h, na Rádio Clube de Blumenau. Seguidamente, ela recebe convites para proferir palestras sobre este ramo do Direito.
Depois de uma denúncia, a Comissão de Fiscalização e Defesa da Advocacia da OAB-SC, representada por dois fiscais, notificou a autora por dar entrevistas no programas. A justificativa: o ato administrativo teria o objetivo de coibir a captação indevida de clientela. Na ocasião, ela foi orientada a não veicular seu telefone ou endereço de escritório nos programas.
Uma vez notificada, a advogada disse que acatou de imediato a orientação. Ainda assim, como se não bastasse, recebeu decisão de que deveria parar, imediatamente, de dar qualquer tipo de entrevista em programa de rádio.
A atitude da OAB-SC a motivou a ajuizar Mandado de Segurança, na 1ª Vara Federal de Blumenau, para garantir o direito de continuar participando de programas de rádios para os quais é convidada. Como a autoridade coatora — presidente desta Comissão na OAB — está sediada na capital catarinense, a ação foi declinada para a 1ª Vara Federal de Florianópolis. O pedido foi atendido em primeira instância. A OAB catarinense recorreu, e o TRF-4 negou a Apelação.
Fonte: texto de JOMAR MARTINS é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul. Revista Consultor Jurídico, 23 de janeiro de 2013

Acesso a decisão: http://www.conjur.com.br/2013-jan-23/advogada-participar-programas-radio-decide-trf?goback=%2Egde_2719499_member_207855626

PELO FIM DA HOMOLOGAÇÃO PRÉVIA DE SENTENÇA ESTRANGEIRA


O projeto do novo Código de Processo Civil traz claros avanços na disciplina da cooperação jurídica internacional, mas não quebra o paradigma do juízo de homologação prévio, concentrado no Superior Tribunal de Justiça. Não seria este o momento de o Brasil realmente avançar no tema da cooperação jurídica internacional e dispensar a homologação prévia obrigatória para que as sentenças estrangeiras tenham eficácia no Brasil?
A única referência direta às sentenças estrangeiras na Constituição encontra-se no artigo 105, I, i que estabelece competência ao STJ para homologá-las. O que existe no artigo 105, I, i, da Constituição é apenas regra de competência, indicadora do foro hábil para homologar sentenças estrangeiras, caso essa homologação seja exigível. A exigibilidade de homologação não é tratada em nível constitucional, mas deixada à legislação ordinária, no âmbito da competência da União para legislar sobre matéria processual.
Creio, portanto, que a lei ordinária poderia dispensar a homologação de determinadas sentenças estrangeiras, assim como fez, em seu artigo 15, parágrafo único, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/1942), revogado tacitamente pelo artigo 483 do Código de Processo Civil e, expressamente, pelo artigo 4º da Lei 12.036/2009. Segundo esse dispositivo, não dependiam de homologação as sentenças meramente declaratórias do estado das pessoas.
Para os que, além da regra de competência, enxergam no artigo 105, I, i da Constituição norma impositiva de condição de eficácia de todas as sentenças estrangeiras, o fundamento lógico estaria na necessidade de controlar os pronunciamentos das jurisdições estrangeiras, a fim de proteger a soberania e a ordem pública nacionais. Porém, mesmo em se admitindo o entendimento de que as sentenças estrangeiras, para terem eficácia no território nacional, estão, por determinação constitucional, sujeitas ao juízo de delibação pelo STJ, não parece haver no texto constitucional imposição de que essa delibação seja condição prévia e obrigatória a todas as sentenças estrangeiras, mesmo àquelas em que nenhuma das partes interessadas ou ainda a autoridade judiciária ou o Ministério Público vislumbrem ameaça à ordem pública ou à soberania.
Uma rápida pesquisa no site do STJ permite observar que dos 7.633 pedidos de homologação de sentença estrangeiras já protocolados no STJ até 15 de novembro de 2011, apenas 299 foram contestados, o que representa menos de 4% do total. E certamente apenas uma fração dessas contestações impediu a homologação. Logo, a quase totalidade das sentenças estrangeiras não tem obstáculos à eficácia no território nacional. Demonstra-se, assim, o desperdício do controle prévio e indistinto exercido pelo STJ sobre todas as sentenças estrangeiras. Esse desperdício agrava-se pelo fato de levar a principal corte federal assuntos não controversos, muitas vezes de jurisdição voluntária, e que, na prática, não passam de questiúnculas que não deveriam ocupar os já muito ocupados Ministros do STJ. Atualmente, protocola-se no STJ uma média de quase 30 novos pedidos de homologação de sentenças estrangeiras por semana, número que cresce por volta de 10% ao ano e que tem, no aumento da globalização e da participação do Brasil na economia mundial, desalentador prognóstico de crescimento ainda maior.
Seria já grande o avanço se o novo Código de Processo Civil alterasse a regra do artigo 483 do atual Código (segundo a qual a sentença proferida por tribunal estrangeiro não terá eficácia no Brasil senão depois de homologada) para sujeitar à prévia homologação apenas as sentenças contestadas, contra as quais fossem suscitadas violação à ordem pública ou à soberania. Criar-se-ia no juízo de execução da sentença estrangeira espécie de incidente processual de homologação que, somente se suscitado, em determinado prazo, pelas partes, pelo juízo de primeira instância ou até mesmo pelo Ministério Público, seria então encaminhado diretamente para julgamento pelo STJ, por força do que dispõe o artigo 105, I, i, da Constituição. Seria uma espécie de reenvio prejudicial de homologação que teria o mérito de provocar o juízo de delibação não em todas as sentenças estrangeiras, mas apenas naquelas em que a ordem pública e a soberania são questionadas.
Note-se que as sentenças estrangeiras, pela solução acima dada, não deixariam de estar sujeitas ao controle soberano pelo STJ, apenas se daria eficiência a esse controle provocando-o quando suscitadas a violação à ordem pública e à soberania, que correspondem ao âmbito material do juízo de homologação. Não instaurado o incidente de homologação no prazo estabelecido, a sentença estrangeira passaria a ter eficácia no Brasil, assumindo a condição de título executivo judicial.
Por fim, vejo que a mesma proposta pode servir também à concessão de exequatur às cartas rogatórias, que poderiam, se norma processual ordinária assim permitisse, virem a ser diretamente cumpridas pelo juízo de primeiro grau, a menos que a concessão de exequatur fosse impugnada. Neste caso, assim como se propôs para a homologação de sentenças estrangeiras, a diligência rogada seria sobrestada até decisão da concessão de exequatur pelo STJ.
As reformas legislativas devem atentar à realidade atual em que a eficácia da circulação internacional de decisões judiciais e da cooperação internacional para o desenvolvimento dos processos judiciais são necessidade — não ameaça — à soberania de Estados que se veem diante do desafio de prestar eficiente serviço de solução de controvérsias cada vez menos limitadas aos seus espaços jurisdicionais.

Por Antenor Madruga  
Fonte Consultor Jurídico

LOGÍSTICA JURÍDICA GANHA ESPAÇOS NOS ESCRITÓRIOS


A logística jurídica vem ganhando cada vez mais espaço no contexto da gestão legal de escritórios que se preocupam em empreender uma administração pautada na estratégia. Tecnicamente, ela consiste no desenvolvimento de procedimentos para otimização do trabalho do departamento paralegal dos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos e geralmente envolve projetos de terceirização de algumas tarefas do contencioso.
É necessário registrar que a logística jurídica, até há pouco tempo, foi marginalizada pelo mercado jurídico, sendo certo que a incipiente utilização dos recursos tecnológicos no meio jurídico acabou por minar a profissionalização deste segmento e, por um longo período, ele foi representado pela estigmatizada imagem do correspondente, qual seja, a de um advogado recém formado que se desloca ao fórum e realiza consultas processuais no tempo ocioso que dispõe entre seus poucos atendimentos e peças processuais diárias.
O estereótipo descrito ainda permeia o imaginário do advogado de grandes bancas, que acaba por estabelecer uma relação de amor e ódio com o correspondente. Não se pode mais conceber esta situação como o ideal da logística jurídica, pois ela não se resume a isto. Um bom projeto de logística jurídica vai abranger uma análise ampla e sistemática sobre o escritório e sua atuação, incluindo seu posicionamento no mercado. Logística jurídica não é ir ao fórum extrair cópias de processos e entregar contestação em audiência!
Hoje, ela é imprescindível a qualquer escritório que queira se destacar, seja ele pequeno, médio ou grande, tenha processos somente na comarca sede ou espalhados pelo estado e mesmo pelo país. Os clientes exigem dos escritórios a onipresença em todas as comarcas onde haja processos seus. Assim, para poder crescer, além de ter uma boa gestão dos procedimentos e dos processos, eles necessitam de bons parceiros, que tenham entrosamento e mesmo proximidade com os cartórios locais, para poder fornecer informações importantes até mesmo para a estratégia de defesa.
Felizmente o mercado acabou por se adaptar, em um movimento que se iniciou com o advento de escritórios de advocacia regionais formatados para atender a demanda das grandes bancas, vindo, até mesmo, alguns contratados, a fundirem-se com seus contratantes.
Vislumbra-se, atualmente, um crescimento e uma maior profissionalização do setor com a criação de empresas especializadas que auxiliam o departamento paralegal e se tornam grandes aliados dos escritórios ao desenvolverem projetos completos de gestão terceirizada de contencioso de volume.
Há grandes benefícios na contratação de empresas de logística jurídica, dentre os quais poderiam ser destacados: centralização das solicitações; padronização dos resultados (cópias tratadas e sempre com a mesma formatação e atuação de modo profissional em audiências, tanto pelos Advogados quanto pelos prepostos); fornecimento de relatórios gerenciais com apresentação de diagnóstico de toda a movimentação da carteira; contratação de seguro de responsabilidade civil ou, ao menos, assunção de responsabilidade em contrato, para o caso de revelia ou outro prejuízo ao cliente do escritório; fim dos problemas com recolhimento de valores ao INSS; redução da equipe interna; facilidade para o departamento financeiro ao receber mensalmente um relatório completo das solicitações (dashboard) e ter a tranquilidade de emitir apenas uma ordem de pagamento mensal por meio de nota fiscal, além de muitos outros benefícios.
Em casos de empresas realmente profissionais, que possuam um alinhamento total de interesses com escritório contratante, poder-se-ia até falar em trabalhos de back office e outros como identificação e mapeamento de fluxos administrativos e operacionais do escritório, para desempenho mais célere, eficaz e menos oneroso do departamento paralegal e da equipe de produção de teses, o que reflete diretamente no lucro, gerando uma redução significativa do custo final.
Ao tratar de custos envolvidos na contratação direta de correspondentes, é notório que, independentemente do local da contratação, o principal problema operacional pode ser descrito em uma só palavra: motivação.
O correspondente designado para realizar um ato para um grande escritório não tem, nem poderia ter, um envolvimento necessário com o cliente, tampouco com a causa em que está prestes a atuar. Também o retorno financeiro advindo do ato não tem o condão de motivá-lo eis que, isoladamente, é irrisório, não mais que algumas poucas dezenas de reais, o que faz com que, via de regra, a atuação forense observe a ‘lei do menor esforço’. A preocupação dos escritórios deve ser maior quando se está diante das chamadas comarcas-problema, onde os preços são inflacionados e a atuação segue a regra local.
As empresas de logística, por sua vez, sabem como sanar estes problemas de diversas formas, contribuindo para que haja uma satisfação integral, tanto pelo escritório contratante quanto pelo correspondente, pois, agregando demandas de vários escritórios, elas conseguem tornar mais produtiva a atividade e propiciam um retorno pecuniário tido como satisfatório ao correspondente. Além do mais, por ser este o seu core business, sabem lidar com os problemas regionais.
Não obstante, ao trabalhar com valores fixos e mais competitivos, a diluição dos custos de solicitações em comarcas onde há uma supervalorização dos preços dos serviços gera um resultado final interessante para o escritório e não deixa o correspondente sem trabalho, pelo contrário, aumenta-o. Em se tratando de serviços prestados a escritórios que atuam com contencioso de volume, onde qualquer diferença nos preços é motivo de contratação ou distrato pelas empresas, este é um grande fator a ser levado em consideração.
É indiscutível que a melhor opção para otimizar o trabalho do departamento paralegal é contratar uma empresa especializada em logística jurídica, entretanto, antes de contratar, o escritório deve ponderar os seguintes aspectos: estrutura; equipe interna e externa; tecnologia envolvida; programas de gerenciamento; ter formato de empresa, mas know-how de escritório de Advocacia, com profissionais qualificados; praticidade na entrega de resultados; qualidade dos serviços; capacidade de atendimento e referências.
É chegada a hora de o mercado jurídico assumir que sem as empresas de logística jurídica e o profissionalismo que elas empreenderam no cotidiano dos escritórios que atuam com contencioso de volume, a gestão legal está incompleta! Aceitar que a logística jurídica seja relegada a um segundo plano, não ocupando seu lugar de destaque na estratégia do escritório, e mesmo pensar nela como mero serviço de advocacia de apoio ou correspondência é jogar dinheiro fora!

Por José Jeronimo dos Reis Silva  
Fonte Consultor Jurídico

UNIVERSIDADES PRECISAM FORMAR UM ADVOGADO GESTOR


Quantos não são os advogados donos de seus próprios escritórios? E mesmo entre os que não são — trabalham por conta própria —, quantos são aqueles que encontram dificuldades para fazer a administração da sua certeira de clientes? Para Fábio Salomon, diretor da Salomon, Azzi Recrutamento Jurídico, esta é uma deficiência que acompanha muitos jovens e veteranos advogados desde a sua formação. O motivo é simples: as universidades não preparam estes profissionais para gerir o seu negócio. Segundo ele, a universidade deixa de abordar questões importantes como a gestão de capital humano.
Fábio Salomon apresentou algumas estratégias mais atuais na identificação, atração, desenvolvimento e retenção de talentos para escritórios de advocacia e departamentos jurídicos durante a Fenalaw 2011. Ele comenta que os escritórios de advocacia ou departamentos jurídicos devem investir em uma área de Recursos Humanos profissional, que pense em pessoas em tempo integral, em infraestrutura de Tecnologia de Informação (considerando que os novos talentos são muitos ligados a isso) e privilegiar a placa — e não os indivíduos sócios da empresa.
“Os advogados nunca foram ensinados a gerir processos, pessoas e o sistema financeiro. Muito menos como negociar, atender os clientes da melhor forma e contratar mais pessoas”, conta. Ele afirma que, para melhorar a gestão, o escritório pode se basear em programas e ações bem sucedidas que outras bancas já fizeram, distribuir os benefícios de forma consistente, mostrar que não há favoritismos, além de desenvolver programas de treinamentos e orientação para advogados e outros funcionários”, finaliza.
Ainda durante a Fenalaw 2011, mas em outra mesa de debate, Nelcina Tropardi, diretora jurídica da Unilever Brasil, também chamou atenção para a questão. "Às vezes, as pessoas acham que um advogado na empresa será só um advogado, mas esquecem de que ele também é um gestor”, comentou. Ela diz que na hora do trabalho, este profissional não deve apenas peticionar, sustentar e redigir contratos, mas também ajustar a capacidade à demanda do trabalho e negociar linhas de defesa com advogados externos. “Além de tudo, a função dele é traduzir o departamento jurídico para o restante da empresa, contribuindo para o pleno entendimento da área”, ressalta.
Fábio Salomon concluiu que o grande desafio das organizações neste cenário é gerenciar seus talentos. “O investimento maior deve ser feito em quem está dentro de casa, e não em quem a empresa deseja que esteja”, ressalta.

Por Rogério Barbosa
Fonte Consultor Jurídico

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

riação de vaga gera direito subjetivo à nomeação de candidato aprovado em cadastro de reserva


A aprovação de candidato em concurso público dentro do cadastro de reservas, ainda que fora do número de vagas inicialmente previstas no edital, garante o direito subjetivo à nomeação se houver o surgimento de novas vagas, dentro do prazo de validade do concurso.

A tese foi firmada pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar dois recursos em mandado de segurança interpostos por candidatos que pretendiam assumir vaga na administração pública.

Nos dois casos, os tribunais estaduais haviam decidido que aprovados em cadastro de reserva, ou seja, fora das vagas estipuladas pelo edital, não tinham direito subjetivo à nomeação, estando limitados pelo poder discricionário da administração, segundo o juízo de conveniência e oportunidade. Isso ocorria mesmo diante de vacância e criação de cargos por lei.

A Segunda Turma do STJ, no entanto, entendeu que existe direito subjetivo para o candidato, seja em decorrência da criação de novos cargos mediante lei ou em razão de vacância pela exoneração, aposentadoria ou morte de servidor.

Exceção à regra 
A exceção a esta regra, de acordo com o STJ, deve ser motivada pelo poder público e estar sujeita ao controle de legalidade. Para os ministros, o gestor público não pode alegar não ter direito líquido e certo a nomeação o concursando aprovado e classificado dentro do chamado cadastro de reserva, se as vagas decorrentes da criação legal de cargos novos ou vacância ocorrerem no prazo do concurso ao qual se habilitou e foi aprovado. A exceção a esta regra poderá ocorrer se alcançado o limite prudencial de dispêndios com folha de pessoal, conforme prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 22, parágrafo único, inciso IV, da Lei Complementar nº 101/2000).

O cadastro de reserva, na avaliação dos ministros, tem servido de justificativa para frustrar o acesso meritocrático de candidatos aprovados em concursos públicos, na alegação do juízo de conveniência e oportunidade da administração.

Para o ministro Mauro Campbell, que apresentou o voto condutor da tese vencedora, a administração “abdica desse mesmo juízo quando cria cargos desnecessários ou deixa de extingui-los; quando abre sucessivos concursos com número mínimo de vagas para provimento por largo espaço de tempo e quando diz resguardar o interesse do erário com extenso cadastro de reserva, ‘tudo sob o dúbio planejamento estratégico’”.

Impacto orçamentário

O STJ adota entendimento de que a regular aprovação em concurso público em posição compatível com as vagas previstas em edital garante ao candidato direito subjetivo à nomeação. A jurisprudência também reconhece direito ao candidato aprovado em cadastro de reserva nos casos de contratação precária para o exercício do cargo efetivo no período de validade do concurso.

“Não obstante a inequívoca a evolução jurisprudencial dos Tribunais Superiores sobre o tema concurso público a questão que envolve o direito à nomeação de candidatos aprovados em cadastro de reserva nos casos de surgimento de vagas merece ser reavaliada no âmbito jurisprudencial”, afirmou Campbell.

A Turma considera que o juízo de conveniência e oportunidade não pode estar apartado de um juízo prévio no momento do lançamento do edital. Cabe ao gestor público agir com probidade, acautelando-se do impacto orçamentário-financeiro redundante das novas nomeações decorrentes na natural movimentação de pessoal no prazo de validade do concurso. Os cargos vagos devem ser extintos e deve haver o remanejamento de funções decorrentes de redução do quadro de pessoal.

“Com todas as vênias das abalizadas opiniões divergentes a esta, se esta não for a exegese, o denominado cadastro de reserva servirá apenas para burlar a jurisprudência hoje consolidada, frustrando o direito líquido e certo daquele que, chamado em edital pelo estado, logra aprovação e finda por sepultar seus sonhos, arcando com os prejuízos financeiros e emocionais, tudo por ter pressuposto que o chamamento editalício partira do Poder Público, primeiro cumpridor da lei, sobretudo em um Estado Democrático de Direito”, concluiu Campbell.

Entenda o caso 
Em um dos recursos apreciados pelo STJ, além das vagas já previstas em edital, a administração convocou mais 226 vagas candidatos habilitados em cadastro de reserva para prestar serviços no interior do estado da Bahia, com o fim de atender ao programa “Pacto pela Vida”, atingindo o total de 598 convocados.

Desses 598 convocados, 69 desistiram e 42 foram considerados inabilitados, o que motivou o candidato que estava na 673ª colocação a interpor mandado de segurança para realizar o curso de formação para soldado da Polícia Militar do estado. O STJ entendeu que, como já havia declaração da necessidade das vagas para atender o programa, a desclassificação e inabilitação de candidatos gerou direito subjetivo até a 703ª posição.

No outro recurso apreciado, a Segunda Turma adotou a mesma tese. Contudo, no caso concreto, a candidata não teve êxito com a demanda pelo fato de sua classificação não atingir a convocação.

No caso, a Lei 2.265/2010 do estado do Acre fixou 140 cargos para Auditor da Receita. Como estavam preenchidos 138 cargos, existiam duas vagas a serem supridas. Obedecendo à ordem de classificação e preenchendo as duas vagas restantes, a colocação da candidata não alcançaria as vagas. Ela seria a próxima. 

Fonte: STJ.

Bloqueio de linha telefônica por "uso excessivo" gera dano moral


Um consumidor, em dia com as contas, teve sua linha telefônica bloqueada por usá-la demais e será indenizado em R$ 5 mil pela Brasil Telecom. Ele foi informado das razões da suspensão ao entrar com reclamação junto ao Procon. A 3ª turma Recursal do TJ/DF majorou o valor definido por decisão de 1º grau.
O autor da ação pedia, em razão do cancelamento injustificado e sem aviso da linha telefônica móvel, a devolução em dobro de valor cobrado em desconformidade com o pactuado no contrato. O pedido foi julgado parcialmente procedente e determinou o restabelecimento dos serviços telefônicos e devolução de R$ 2.031,39, pago indevidamente, além de R$ 500, por dano moral.
Inconformado com o valor, ele recorreu da sentença. Em sede revisional, a 3ª turma Recursal do TJ/DF deu provimento ao recurso, por entender necessária a adequação do quantum "aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem assim à natureza da ofensa e às peculiaridades do caso sob exame".
Para a desembargadora Sandra Reves Vasques Tonussi, relatora da ação, "a par do tratamento desrespeitoso, o bloqueio indevido do serviço essencial atinge direito da personalidade do consumidor, por violação à sua dignidade, cujos prejuízos afetos aos transtornos e aborrecimentos se presumem suportados".
A sentença originária foi reformada para condenar a empresa ré à devolução, em dobro, dos valores pagos indevidamente, totalizando R$ 4.062,78, e ao pagamento de R$ 5 mil, pelos danos morais que causou, acrescidos a ambos os valores juros e correção monetária.
Veja a íntegra do acórdão.
  • Processo20120110769675

    Fonte: site Migalhas, http://www.migalhas.com.br

A renda dos 100 mais ricos poderia acabar com a pobreza no mundo


A renda líquida obtida em 2012 pelas 100 pessoas mais ricas do mundo, 240 bilhões de dólares, poderia acabar quatro vezes com a extrema pobreza no planeta. A conclusão está num relatório publicado (link em PDF, em inglês) no fim de semana pela ONG britânica Oxfam. A entidade não entra em detalhes a respeito das contas que fez para chegar ao dado, mas os números servem como alerta para a intensa e crescente desigualdade social no mundo. O documento serve para chamar a atenção para os debates do Fórum Econômico Mundial, que começa nesta terça-feira 22 em Davos, na Suíça. A desigualdade ganhou um painel próprio no encontro, marcado para sexta-feira 25, mas tanto suas conclusões quanto os avisos da Oxfam devem cair em ouvidos moucos. O mundo hoje está construído para ampliar a desigualdade e não há sinais de mudança.
O relatório da Oxfam ecoa estudos e análises econômicas recentes sobre a desigualdade. Hoje, as diferenças entre os países estão diminuindo, mas a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres dentro de cada nação está crescendo. Essa é a regra na maior parte das nações em desenvolvimento e também nas desenvolvidas.
Nos Estados Unidos, a desigualdade social é tão grande hoje em dia que, nas palavras da revista The Economist, supera a das últimas décadas do século XIX, a chamada “Era Dourada” do capitalismo norte-americano. A porcentagem da renda nacional que vai para o 1% mais rico da população dobrou desde 1980, de 10% para 20%. Para o 0,01% mais rico, a bonança foi maior: sua renda quadruplicou.
Na União Europeia, a situação também é ruim. No livro Inequality and Instability (Desigualdade e Instabilidade, em tradução livre), o economista James Galbraith mostrou que, se tomada como um conjunto, a UE supera os Estados Unidos em desigualdade. Isso se explica, em parte, pelas diferenças entre os diversos países do bloco. Ainda assim, se tomadas separadamente, as nações europeias também têm observado aumento da desigualdade. Um estudo sobre o tema publicado em 2012 pela OCDE, concluiu que “desde a metade dos anos 1980″, os 10% mais ricos de cada país “capturam uma crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os 10% mais pobres estão perdendo terreno”. No Japão, onde 100 milhões de pessoas se diziam de classe média, estudos mostram, desde o fim da década de 1990, o aumento da desigualdade a partir da metade dos anos 1980.
A política sequestrada
Não é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo desenvolvido desde os anos 1980. Foi nesta época que começaram a ter efeito as políticas lideradas pelos governos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret Thatcher (1979-1990) no Reino Unido, mas adotadas em boa parte do mundo por outros governantes, como Helmut Kohl (Alemanha), Ruud Lubbers (Holanda) e Bob Hawke (Austrália): impostos mais baixos, desregulamentação do sistema financeiro, redução do papel do governo e outras medidas integrantes do receituário neoliberal. Essa política, arrimo da globalização, teve alguns efeitos positivos, mas foi levada a extremos por quem se beneficia delas. Para manter as políticas desejadas, que aumentavam sua riqueza (e também a desigualdade) esses grupos de interesse se encrustaram nos círculos de poder. Eles sequestraram a política.
Idoso pede esmola no chão de uma rua de Kandahar, no Afeganistão, na segunda-feira 14. Um relatório da ONU apontou que um terço da população do país vive "na mais abjeta pobreza porque os governantes estão mais interessados em proteger seus interesses escusos". Foto: Mamoon Durrani / AFP
Idoso pede esmola no chão de uma rua de Kandahar, no Afeganistão, na segunda-feira 14. Um relatório da ONU apontou que um terço da população do país vive “na mais abjeta pobreza porque os governantes estão mais interessados em proteger seus interesses escusos”. Foto: Mamoon Durrani / AFP
Este fenômeno é analisado no livroWinner-Take-All Politics(Política do vencedor leva tudo, em tradução livre), dos professores Jacob S. Hacker, de Yale, e Paul Pierson, da Universidade da Califórnia. Em artigo de capa da revista Foreign Affairs em dezembro de 2011, o jornalista George Packer resume o argumento do livro em duas palavras: dinheiro organizado. Foi no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980 que as grandes corporações de diversos setores da economia passaram a financiar as campanhas eleitorais, dando início a uma “maciça transferência de riqueza para os americanos mais ricos”.
Este modelo de política, e de fazer política, grassou no mundo desenvolvido e foi transplantado para os países em desenvolvimento, onde foi emulado com maestria pelas elites econômicas locais. Não é uma surpresa, então, que a desigualdade esteja aumentando também nesta região. A Índia acumula diversos bilionários, mas continua sendo o país com mais pobres no mundo. A África do Sul é mais desigual hoje do que era no fim do regime segregacionista do Apartheid. Na China, onde não é preciso sequestrar a política, apenas pertencer ou ter um bom relacionamento com o Partido Comunista, a desigualdade é semelhante à sul-africana: os 10% mais ricos ficam com 60% da renda.
A América Latina e o caso do Brasil
O único lugar do mundo onde a desigualdade está caindo de forma sistemática é a América Latina, justamente a região mais desigual do mundo. Isso ocorreu nos últimos anos por dois motivos. O modelo neoliberal, e a ascensão do “dinheiro organizado”, também chegaram aos países latino-americanos, mas em alguma medida entraram em choque com forças políticas contrárias a uma parte importante do receituário, a não-intervenção do Estado na economia. Assim, os governos da região, entre eles o de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, conseguiram estabelecer a redução da desigualdade social como uma prioridade. Em segundo lugar, os países da região, também incluindo o Brasil, foram muito beneficiados pelo rápido crescimento econômico provocado pela existência de um mundo faminto por commodities.
Imagem mostra a favela de Kataanga, em Kampala, a capital de Uganda. Foto: Michele Sibiloni / AFP
Imagem mostra a favela de Kataanga, em Kampala, a capital de Uganda. Foto: Michele Sibiloni / AFP
Há, entretanto, inúmeras dúvidas a respeito da sustentabilidade do modelo latino-americano de redução da desigualdade, especialmente quando a economia começar a desacelerar, situação em que o Brasil já se encontra. Como notou o colunista Vladimir Safatle em edição de dezembro de CartaCapital, o capitalismo de Estado do governo Lula promoveu um processo de oligopolização e cartelização da economia, o que favorece a concentração de renda nas mãos de pequenos grupos. Ao mesmo tempo, Lula não fez, e Dilma Rousseff não dá indícios de que promoverá, a universalização e qualificação dos sistemas públicos de educação de saúde. Sem essas reformas, a classe média seguirá gastando metade de sua renda com esses dois serviços básicos e os pobres continuarão com acesso a escolas e hospitais precários. Os ricos, por sua vez, não terão problemas. A desigualdade de renda poderá cair ainda mais, mas a desigualdade de oportunidades vai perseverar, e a imensa maioria dos pobres continuará pobre.
Para fazer essas reformas, e outras potencialmente capazes de reduzir a desigualdade, como a taxação de grandes fortunas e de heranças e reformas estruturais, o Brasil e outros países latino-americanos enfrentarão as mesmas questões do mundo desenvolvido. Em grande medida, a política latina foi sequestrada pelo “dinheiro organizado”. Levantamento do repórter Piero Locatelli mostra que, em 2010, 47,8% das doações eleitorais no Brasil foram feitas por empresas e que apenas 1% dos doadores foram responsáveis por 73,6% do financiamento da campanha.
O resultado disso, seja nos Estados Unidos, na Europa, na Índia ou no Brasil, é uma grave crise de representação. O cidadão não consegue participar da vida pública e ter seus anseios ouvidos pelo governantes. Os partidos, à esquerda e à direita, caminham cada vez mais para o centro e, como diz o filósofo esloveno Slavoj Zizek, fica cada vez mais difícil diferenciá-los. A esquerda, supostamente contrária aos absurdos do liberalismo econômico, ou aderiu a ele e também tem suas campanhas financiadas por grandes corporações ou não tem um modelo alternativo e crível a apresentar.
Em seu relatório, a Oxfam pede aos governos para tomar medidas que, ao menos, reduzam os níveis atuais de desigualdade social aos de 1990. É bastante improvável que os política e economicamente poderosos resolvam fazer isso do dia para a noite. Estão aí os brasileiros que chamam o Bolsa Família de bolsa-esmola e o ator francês Gerard Depardieu, que preferiu dar apoio a um ditador a correr o risco de pagar impostos de 75%, para provar isso. Talvez apenas o entendimento de que, como diz a ONG britânica, a desigualdade social é economicamente ineficiente, politicamente corrosiva e socialmente divisiva, provoque mudanças. Para isso, no entanto, é preciso que os poderosos entendam os riscos da desigualdade.
Fonte: José Antonio Lima, site da Carta Capital, 24/01/13.