terça-feira, 24 de junho de 2014

Usucapião e abandono de lar: um retrocesso na seara familiar

 Lei 12.424 de 2011 inseriu o artigo 1.240-A no Código Civil e derrubou diversos avanços até então conquistados com o diploma legal de 2002. Várias nomenclaturas já estão sendo utilizadas em torno do fenômeno, a saber: “usucapião conjugal”, “usucapião familiar” e “usucapião pró-moradia”.
Ocorre que a alteração se propõe a revisitar questões já ultrapassadas no contexto familiar, tais como: abandono do lar, indagação da culpa no divórcio e, pior, estipulação de prazo para divisão de patrimônio a partir da indagação do tempo de convivência entre cônjuge ou companheiro.
Diante desse quadro, alguns questionamentos precisam ser feitos: 1) O período de dois anos é razoável para um sujeito adquirir a propriedade de um bem que outrora pertencia ao casal?; 2) O direito de família moderno ainda admite o fenômeno “abandono de lar”?
Para responder a tais indagações, torna-se imprescindível ter em mente que, com o advento do Código de 2002, as relações privadas passaram por um rompimento do aspecto individualista. Os novos dispositivos legais deste Código passam a disciplinar um conjunto de interesses estruturados no princípio da socialidade, em que, por exemplo, a força absoluta da propriedade é mitigada para proteger o bem comum e a função social (DUQUE, 2007). Vejamos o que dispõe o polêmico artigo 1.240-A dispõe que:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
É patente a intenção da norma, ou seja, quando ocorrer o abandono do lar torna-se possível o cônjuge ou o companheiro ou o convivente usucapir o bem imóvel, no prazo de dois anos, quando o bem for adquirido entre tais sujeitos de direito.
A norma propõe conferir o direito à usucapião mediante a prova da posse direta. Cabe, antes de analisar essa posse direta, compreender a estreita relação entre a posse e a propriedade.
Código Civil, no artigo 1.196, define que possuidor é “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Já o artigo 1.228 dispõe que o “proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Retornando à noção de posse direta, tem-se que considerar o novo conceito da posse “como posse-trabalho, ora na condição de posse-moradia, bem como ainda na ideia de posse-necessidade. No direito brasileiro, avança-se no sentido da concepção social da posse” (GAMA, 2010, p. 19).
A posse, portanto, caracteriza-se por uma apropriação econômica e, ainda, social consciente sobre um bem, voltada a uma finalidade individual que representa a própria finalidade coletiva (CHAVES e ROSENVALD, 2009, p. 53).
Ora, tem-se, então, que quando o Senado Federal, ao realizar os debates de aprovação da Lei 12.424/2011, denominou tal instituto de “Usucapião Pró-Família”, cometeu um atecnia, pois fez uma análise nitidamente patrimonialista nas relações familiares, diante da penalidade civil de perda patrimonial.
Entendemos que o direito de propriedade só sobreviverá “se a leitura que dele se fizer, acompanhar a realidade social à sua volta, ainda que se reconheça a flexibilidade inerente à própria instituição, de modo a aceder ao sistema político-econômico a que pertença” (TORRES, 2007, p. 432).
Respondendo, portanto, às indagações aqui propostas, entendemos, portanto, ser incompatível com o Código de 2002 o reconhecimento da natureza existencialista e patrimonialista da usucapião familiar, menosprezando o ser enquanto ser humano, apenas valorizando-o como titular de um bem imóvel.
O dirigismo contratual imposto na norma civil, ora em exame, exagera na violação à propriedade privada e viola, portanto, norma constitucional. Isso porque, conforme observe Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “o Direito Civil é constitucionalizado, com forte carga solidarista e despatrimonializante”, sendo assim, não cabe revisitar a noção de culpa, bem como a ideia de perda da propriedade a fim de penalizar um cônjuge ou companheiro que não deseja mais manter a relação familiar.
Neste trabalho, entendemos que a propriedade, a usucapião e a família devem ser condicionadas à realização de princípios e regras constitucionais que se projetam à construção da socialidade e dignidade da pessoa humana.
Bruna Lyra Duque
Publicado por Bruna Lyra Duque
Advogada, sócia fundadora do Lyra Duque Advogados (www.lyraduque.com.br), Doutoranda e Mestre do programa de...

Fonte: JUSBRASIL

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