segunda-feira, 22 de junho de 2015

A Constituição Federal e a Preparação/Formação do Juiz Brasileiro

Autor:
SALOMÃO, Luis Felipe

1. Introdução
O estágio atual da preparação e formação de juízes no Brasil é tema por demais desafiador.
Vem a calhar a obra imortal de Kafka, que superou o seu tempo e apresenta um painel rico em várias questões da vida moderna. Direito, psicanálise, religião, são assuntos tratados com absoluta transparência e objetividade.
O percurso surrealista de Joseph K, no magnífico texto de "O Processo", homem indefeso e incrédulo dentro de um sistema judicial anacrônico e corrupto, hierarquizado e inacessível, cruel e injusto, é o pano de fundo de uma ampla reflexão sobre o Judiciário que se iniciou no segundo pós-guerra e ainda não terminou.
Por isso, a importância da preparação do magistrado, de grande relevância para o processo de mundialização vivenciado pela sociedade pós-moderna.
2. Acesso à Justiça no Brasil
No Brasil, a partir da Constituição de 1988, quando se redemocratizou o País, é que o Judiciário começou a ser demandado pela maioria da população brasileira. Essa explosão de demandas judiciais, funcionando como verdadeiro conduto de cidadania, teve reflexo imediato: a crise do Poder Judiciário.
Na verdade, essa pletora de novas ações representa uma medalha de duas faces. Por um lado, é bem verdade que nunca o Judiciário teve tanta visibilidade; por outro, também é verdadeiro que a qualidade dos serviços prestados decaiu muito, e a demora para a solução dos litígios constitui o que se denomina de eternização das demandas.
Ademais, surge o fenômeno da judicialização das relações políticas e sociais, assim também o tema da democratização do acesso à Justiça.
Acesso à Justiça - e não apenas ao Poder Judiciário - implica a garantia de acesso ao justo processo, sem entraves e delongas, enfim, garantia de ingresso em uma máquina apta a proporcionar resolução do conflito trazido, com rapidez e segurança.
No Brasil, 25 anos após a Constituição de 1988, o número de casos novos multiplicou-se mais de 80 vezes.
Em 1988, houve ajuizamento de cerca de 350 mil novas ações em todos os segmentos da justiça. Em 2012, último levantamento do "Justiça em números" (CNJ), foram mais de 28 milhões, com crescimento anual de cerca de 9%. Há próximo de 92 milhões de processos em andamento, com uma taxa de 70% de congestionamento.
Nada obstante, os juízes brasileiros ocupam o terceiro lugar no mundo em termos de maior produtividade, com carga de trabalho de cerca de 5.000 processos por ano para julgamento.(1)
Os números revelam 1 processo para cada 2 habitantes no Brasil - o que presume uma grande concentração de casos em poucos litigantes -, enquanto na Austrália existe 1 processo para cada 6,4 mil habitantes.
Na verdade, apesar de realizados há mais de 20 anos, foi a partir dos primorosos estudos de Mauro Cappelletti e Bryant Garth ("Acesso à Justiça", Editora Sergio Antonio Fabris, 2002) que inúmeras contribuições para enfrentar o grave problema aperfeiçoaram-se, dentre as quais se destacam: a) a assistência judiciária gratuita; b) as ações coletivas; c) as soluções alternativas à jurisdição.
Entre nós brasileiros, a CF (art. 5º, XXXV e LXXIV) estabelece o princípio geral do amplo, gratuito e democrático acesso à Justiça. Além disso, a Lei da Assistência Judiciária (1.060/50), a Lei da Ação Popular (4.717/65), a Lei da Ação Civil Pública (7.347/85), o Código de Defesa do Consumidor (8.078/90), a Lei dos Juizados Especiais (9.099/95) e a Lei da Arbitragem (9.307/96), dentre outras, são exemplos reais de tais preocupações.
De fato, o crescimento da sociedade e sua complexa estruturação num mundo globalizado orientou a adoção de modelo temperado de divisão de tarefas, no sentido de facilitar aos cidadãos o acesso à justiça, bem como de conferir alternativas confiáveis para a solução de conflitos.
3. Formas de Seleção da Magistratura
3.1. A Função Judicial
Está aceito que não há sociedade sem direito. O conjunto normativo, escrito ou não, exerce função ordenadora da sociedade.
Enquanto inexistente o Estado organizado, prevalecia a Justiça privada. Vale dizer, os conflitos de interesses surgidos no seio social eram resolvidos pela autotutela (ou autodefesa), equivalente à lei do mais forte ou do mais astuto. Se isso não ocorresse, sobrevinha a autocomposição, quando ambas as partes em conflito, ou uma delas, abria mão do interesse, ou parte dele, advindo a desistência (renúncia à pretensão), submissão (aceitação plena da pretensão, sem resistência) ou transação (mútuas concessões).
A partir do surgimento efetivo do Estado, já no direito romano, ele próprio chama para si a função de dizer a jurisdição, a missão de resolver os conflitos da sociedade, de modo a restabelecer a paz social abalada com a pendência. Desloca-se o eixo: a Justiça, antes em regra de natureza privada, passa a ser pública.
Evidentemente, todas essas transformações não ocorreram instantaneamente, de um momento para o outro. Ao contrário, os fatos aconteceram com as vicissitudes e a velocidade normal das ocorrências históricas.
Portanto, dentre as principais funções do Estado moderno (v.g., administrar, legislar), avulta a missão de prestar jurisdição como garantidora dos direitos individuais e coletivos, sempre na pretensão de zelar pela convivência harmoniosa dos integrantes da sociedade.
3.2. A Independência dos Juízes
A questão da independência dos juízes tem íntima ligação com o que se denomina de controle de constitucionalidade das leis.
No caso dos Estados Unidos da América, a partir da Constituição de 1787, surgiu fenômeno que logo ganhou o mundo, denominado supremacia da Constituição (a "lei das leis"). Os americanos, após a luta sangrenta pela independência, compreenderam bem o grande desafio do homem contra o tempo e contra a morte e trataram de inserir na Constituição os valores principais da sociedade que pretendiam ver construída. As leis passam e podem ser revogadas, mas a Constituição fica.
A sociedade americana incumbiu os seus juízes de interpretar esses valores da Carta Constitucional, fazendo com que eles se tornem perenes, imutáveis, mas adaptados à realidade moderna. Na luta contra o tempo, são os magistrados os encarregados de dizer se uma lei fere ou não os princípios constitucionais.
Por isso mesmo, a Suprema Corte decide as grandes causas que envolvem a cidadania americana, tais como o fim da discriminação racial, permissão para o aborto, dentre outros tantos temas relevantes.
É o movimento descrito na doutrina constitucional como judicial review, pois a sociedade confiou aos juízes, pela força de seus julgamentos, a concretização das normas (valores) constitucionais.
Percebe-se claramente a diferença do sistema francês. No berço da revolução que modificou o mundo, os franceses pós-revolucionários passaram a nutrir desconfiança em relação aos juízes, um dos poucos cargos de funcionários públicos que não foram decapitados pelo nouveau regime.(2)
Talvez por isso, também, tomando o paradigma francês, a maioria dos países europeus tenha constituições flexíveis - que podem ser alteradas por legislação menor -, criando o que se denominou chamar de supremacia do parlamento.
Como havia desconfiança na atuação do Judiciário sob o velho regime francês, melhor seria não lhe confiar a guarda absoluta dos valores constitucionais, nem tornar imutáveis ou perenes as Constituições.
No Brasil, desde a primeira Constituição Republicana de 1891, os juízes gozam das principais garantias, como a vitaliciedade e irredutibilidade de vencimentos, o que coloca o Poder Judiciário em um estágio avançado em relação aos vizinhos latino-americanos.(3)
Vale lembrar, no particular, a sempre lembrada lição de Calamandrei(4), mencionada pelo grande jurista Mauro Cappelletti: "Não é honesto refugiar-se atrás da cômoda frase feita de quem diz que a magistratura é superior a toda crítica e a toda suspeita: como se os magistrados fossem criaturas sobre-humanas, não tocados pela miséria dessa terra, e por isso intangíveis. Quem se satisfaz com estas vãs adulações ofende a seriedade da magistratura: a qual não se honra adulando-a, mas ajudando-a, sinceramente, a estar à altura de sua missão."
3.3. Formas de Recrutamento no Mundo
Um dos problemas contemporâneos mais complexos, em um mundo sem fronteiras e cada vez mais conectado em razão da revolução ocorrida - sobretudo nos últimos vinte anos -, nos meios e modos de comunicação, é, sem dúvida, descobrir a "forma" correta de seleção dos juízes.
Vale dizer, diversos países debatem sobre a maneira de melhor recrutar o corpo de magistrados encarregados de prestação estatal da jurisdição, de maneira a atender às exigências da sociedade moderna.
Há um consenso de que não basta um candidato que domine puramente a ciência jurídica, do ponto de vista exclusivamente técnico.
Os desafios do mundo atual para o exercício de tão relevante mister exigem a escolha de jurista com sensibilidade e inteligência emocional, além de formação humanística que lhe permita conhecer noções gerais acerca de sociologia, filosofia, ética, deontologia, liderança, administração, micro e macroeconomia, relacionamento com os outros Poderes e com a mídia, dentre outros atributos.
Não é tarefa fácil estabelecer uma forma de seleção que possa aferir tantos predicados, de modo a buscar o perfil de juiz desejado pela sociedade, sobretudo os mais vocacionados, compatibilizando a escolha com os requisitos da impessoalidade e moralidade previstos na Constituição Federal.
Na maioria dos países - incluindo o Brasil -, o recrutamento para a magistratura tem como base, em regra, o ingresso pela via do concurso público.
Alemanha, França, Portugal e Espanha possuem "escolas de magistratura" com longa experiência, e nenhum magistrado começa a trabalhar sem que tenha passado, pelo menos, um longo período em treinamento. Na verdade, e em regra, o concurso público é realizado para ingresso nas próprias escolas, e as provas no curso ali ministrado têm caráter eliminatório.
Com efeito, no sistema alemão, a sua principal característica está na necessidade de os candidatos ao exercício de uma profissão jurídica frequentarem uma mesma formação, composta por duas fases: formação universitária e formação prática. O curso universitário dura entre 3 anos e meio e 5 anos e meio, após o aluno é submetido a um rigoroso exame final. Uma vez aprovado, segue para a fase prática, com duração de 2 anos, sendo obrigatória a realização de estágios obrigatórios - em jurisdição civil, penal, na Administração Pública e em escritório de advocacia - e de outros de caráter facultativo. Ao final dessa segunda fase, o aluno é submetido às provas escritas (Klausurem) e à oral, incluindo um trabalho sobre um caso concreto (Aktenvortrag). Após a nomeação, existe um período probatório que pode variar entre 3 e 5 anos, com a aplicação de avaliações semestrais nos 2 primeiros anos, em que o presidente do Tribunal de Recurso pode dispensar o novo magistrado, sem justificativa e, a partir do terceiro ano, somente por inaptidão. Findo o período probatório, a nomeação é definitiva e vitalícia para a carreira jurídica.
Na França, o ingresso à magistratura é realizado junto à École Nationale de la Magistrature (ENM), cujo acesso não é restrito aos bacharéis em direito, sendo porém, amiúde, a maioria dos alunos. A ENM organiza 3 concursos de recrutamento por ano: o primeiro, para bacharéis com idade até 27 anos; o segundo, reservado aos funcionários com pelo menos 4 anos de serviço e idade até 40 anos; o terceiro (instituído pela Lei Orgânica de 1992), para candidatos com pelo menos 8 anos de atividade profissional e idade máxima de 40 anos. Além desses concursos, está prevista a seleção "sur titres", limitada a 20% do número de auditores de justiça recrutados por concurso e dirigida a candidatos entre 27 e 40 anos de idade, com experiência profissional mínima de 3 a 4 anos, reduzindo-se o período de formação para 27 meses. As provas dividem-se em provas escritas de admissibilidade e provas orais de admissão. A lei orgânica de 2001 criou também um concurso complementar destinado a recrutar magistrados de primeiro e de segundo grau, postos mais elevados na hierarquia judiciária. Para o segundo grau, é necessária idade mínima de 35 anos e 10 anos de atividade profissional; para o primeiro grau, 50 anos de idade e 15 anos de experiência profissional. Os admitidos devem cursar 1 mês de formação na ENM antes de um estágio de 5 meses em atividade jurisdicional.
No modelo espanhol, os candidatos à magistratura judicial ou do Ministério Público (fiscal) devem se submeter ao concurso público. A opção por uma ou outra carreira será definida pela pontuação obtida no rigoroso certame, abrindo acesso às escolas de formação: a Escuela Judicial, para juízes (criada em 1944, recebendo formandos a partir de 1960 e refundada em Barcelona em 1997), e o Centro de Estudios Jurídicos, para os fiscales. O plano de formação da Escuela Judicial, aprovado anualmente pelo Consejo General del Poder Judicial (CGPJ), exige o preenchimento de lacunas formativas não detectadas pelo concurso, aberto à pluridisciplinaridade e à realidade social, com uma duração de 2 anos. No primeiro ano, o curso envolve aulas teóricas e casos práticos, objetivando o desenvolvimento da capacidade de análise. No segundo ano, os alunos realizam estágios práticos nos tribunais de Primeira Instância e em de Instrução, permitindo contato direto com o direito, com os princípios processuais e com regras de procedimento. Em ambas as fases, a avaliação é feita continuamente, principalmente pelas informações prestadas pelo juiz orientador. Objetiva-se, dessa forma, estimular a percepção dos problemas jurídicos, aprofundar e complementar o conhecimento acerca da realidade social, dentro da perspectiva local, continental e internacional.(5)
Também de modo geral, na Europa Continental, sempre que uma lei entra em vigor, os juízes inicialmente a debatem, estudam-na e entendem adequadamente seu alcance, pois se acredita que o magistrado bem capacitado faz a lei ter eficácia plenamente, impedindo aquele chavão de que o texto legal é bom, "mas não pegou".
4. A preparação e Formação dos Juízes no Brasil
4.1. Introdução
Introduzir é conduzir de um lugar para outro, fazer entrar num lugar novo.
Adquirindo por empréstimo a belíssima imagem de Michel Miaille(6), a visita a uma casa, com a orientação de um guia, é sempre uma experiência diferente.
A visão que se tem dos cômodos da casa, as fachadas, seus ambientes e interiores, é a de uma terceira pessoa, e não do próprio visitante.
Visitar a construção sozinho, sem o guia, implica outra forma de observação, descobrindo as divisões internas, os quartos fechados, a lógica do edifício.
Há ainda a visão daquele que é um habitante da casa, que conhece os relatos familiares, as escadas ocultas, a atmosfera íntima dos ambientes.
Para logo se verifica que um mesmo fenômeno permite uma diversidade de percepções, dependendo do ângulo que o observador o examine.
Assim também é a preparação que se deve realizar do magistrado recém-ingresso; permanente, continuada, para que a "seleção" se conecte à "preparação", em seguida ao exercício da função e depois ao constante "aperfeiçoamento" do juiz.
É como se, prosseguindo na mesma imagem do "visitante e da casa", além de se procurar um panorama geral da construção, ainda venha a se examinar as suas estruturas.
Por outro lado, qualquer estudo do direito não pode ser minimamente compreendido, senão em relação a tudo que permitiu sua existência, vislumbrando-se, em seguida, um futuro possível.
É dizer, devemos projetar o direito no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a razão de ser, vinculando-o a outros fenômenos da sociedade, solidário com o tempo passado, presente e futuro.
O conjunto das normas jurídicas é, antes de mais nada, uma visão generosa de um povo, buscando reduzir os antagonismos sociais.
O juiz é o grande artífice dessa obra de engenharia social, o guardião das promessas constitucionais, e a democracia exige seu adequado preparo para bem e fielmente cumprir sua missão, o que faz lembrar a figura festejada por Hélio Tornaghi:
É utilíssimo para um povo ter boas leis; mas é melhor ainda ter bons juízes.
Há, na verdade, duas maneiras de conceber a função do juiz.
A primeira é a descrita com tanta finura por Kantorowicz, reproduzida mais tarde por Calamandrei, lembrando a figura do juiz funcionário público, armado com aquela máquina de pensar que o prende aos grilhões da letra estreita da lei.
O segundo é a do juiz que sente e pensa como qualquer pessoa normal, que não é peça de uma engrenagem; que vivifica a lei como o oxigênio da realidade.
Esse é o bom juiz, que tem a firmeza no agir e a suavidade no trato.
O bom juiz é, antes de mais nada, um justo.
4.2. Perfil de Ingresso na Magistratura Brasileira
A última pesquisa sobre o tema, extensa e detalhada, foi realizada em 2005 pela Professora Maria Tereza Sadeck (USP), uma das maiores especialistas em estudos sobre Poder Judiciário, apontando o perfil dos juízes que ingressam na magistratura brasileira.(7)
Conforme o estudo, 96,5% dos juízes ativos exerceram atividade profissional anterior ao ingresso na magistratura, contra apenas 3,5% que não a realizaram, o que descaracteriza a ideia de que o juiz ingressa sem experiência. O tempo médio de formatura até o ingresso na magistratura é 7,2 anos, reforçando essa tese.
Quanto ao exercício de atividades acadêmicas, 4,8% dos magistrados lecionam em faculdade de direito pública, 20,3% em faculdade de direito privada, 17,1% ministram aulas em escolas de magistratura e 10,3% atuam em outras instituições. Nítido, portanto, que a maioria dos juízes tem dedicação exclusiva à missão de julgar.
A tendência, no Brasil e no mundo, é o recrutamento de candidatos mais jovens, ainda não inseridos completamente no mercado de trabalho.
Esse fenômeno da juvenilização é comum na Europa, especialmente na França, Itália, Portugal, Espanha e Alemanha.
Em todos os casos, é a democracia de acesso que a induz.
No sistema da commom law, nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, o recrutamento é diferente. Em regra, não há concursos públicos, e a seleção é realizada ora por eleição, ora por indicação da Corte ou do Presidente da República, apontando os advogados mais antigos e experientes e, claro, profissionais com idades mais avançadas.
Os dados de 2005 permitem uma útil comparação com os elementos extraídos da significativa e pioneira pesquisa "O perfil do magistrado brasileiro", do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), em conjunto com a Associação de Magistrados Brasileiro (AMB), realizada em 1996 pelos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos.(8)
O exame comparado dos números permite um olhar generoso quanto à evolução da magistratura nos últimos anos.
No estudo do IUPERJ, indagou-se a opinião dos magistrados acerca da forma de ingresso na carreira. Dentre os juízes de primeiro grau em atividade, 98,2% acreditam que o sistema de concurso público melhor assegura o estado democrático de direito, contra 1,8% que pensa ser o processo eletivo um meio de aproximar o Poder Judiciário aos valores da comunidade de maneira mais efetiva.
A pesquisa apontou também que, para 62,9% dos juízes de primeiro grau e 58% dos magistrados de segundo grau, o concurso público para ingresso na magistratura, na forma pela qual vem sendo realizado, tem facultado o acesso de todos os profissionais do direito aos seus quadros, possibilitando o recrutamento de pessoas de variadas faixas etárias, de diferentes regiões e com formações culturais diversas.
A assertiva de que as Escolas da Magistratura devem servir como instrumento que favoreça uma melhor seleção dos futuros juízes, oferecendo ensino especializado àqueles que pretendem concorrer à magistratura e prevendo concessão de bolsas de estudo para os seus melhores alunos, conta com a concordância de 59,1% dos juízes de primeiro grau e 63,3% dos de segundo grau.
Um dado muito relevante, que já despontava em 1996, é o de que os magistrados de primeiro e segundo grau, na proporção de 45% e 54,2%, respectivamente, afirmam ser importante a passagem dos futuros juízes pela Escola da Magistratura.
Naquela época, dentre os magistrados que ingressaram na carreira mediante concurso, 32% dos juízes de primeiro grau e 6,6% dos de segundo grau frequentaram Escola da Magistratura.
A experiência profissional anterior na área de Direito era vista como condição indispensável para ingresso na carreira por 74,4% dos juízes de primeiro grau e 71,2% dos de segundo grau.
A maioria dos entrevistados (58,3% dos juízes de primeiro grau e 58,9 dos de segundo grau) avaliaram que, nos dias atuais, a capacitação do magistrado, para além de seu talento, está associada à qualificação técnica, perícia científica e formação especializada. Concordaram que a carreira do juiz, para se fazer independente de avaliações subjetivas, deve ser institucionalizada pelo Poder Judiciário, segundo critérios de titulação como ocorre em outras profissões, a partir da criação de cursos orientados para qualificação progressiva dos magistrados.
4.3. As Escolas de Magistratura no Brasil
Há grande diversidade em relação às escolas em funcionamento, algumas se voltando para a formação de juízes, outras se dedicando à preparação, seleção e aperfeiçoamento.
De acordo com os dados colhidos da pesquisa realizada pela juíza Maria Inês Correa de Cerqueira César Targa(9), realizada no ano de 2005, dentre as Escolas do País, 54,54% são vinculadas a Tribunais e 27,27%, a associações de magistrados; 18,18% não têm vínculos.
Analisando ainda os números, majoritariamente (68,18%) as escolas brasileiras exploram dúplice atividade: formação do candidato à magistratura e formação inicial e continuada do magistrado já empossado. Dedicam-se apenas ao aprimoramento do magistrado 22,72% das escolas e, somente à formação do candidato, 9,09%.
A maior parte das escolas (72,72%) tem cursos regulares para candidatos à carreira e 13,63% ministram cursos regulares aos magistrados já empossados. Em regra, os juízes que ingressaram na carreira recebem cursos esporádicos (68,18%).
A pesquisa também revela que a atividade de formação do candidato à magistratura tem sido desenvolvida de forma mais organizada do que aquela destinada aos magistrados. A média dos cursos preparatórios é de 703,56 horas-aula, ao passo que à formação inicial e continuada dos magistrados empossados são destinadas, em média, 133,50h e 22h, respectivamente.
Aponta o estudo que o corpo docente das Escolas é formado, em grande parte, por juízes (60,75%), advogados (17,89%) e membros do Ministério Público (13,01%). Apenas 8,35% dos docentes não integram essas carreiras.
O grupo de professores inseridos nas Escolas é composto de 10,46% de doutores, 22,14% de mestres e 29,31% de especialistas.
É relevante o fato de que mais da metade das escolas (59,09%) obtém suas receitas dos cursos preparatórios que ministram.
5. A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)
5.1. Histórico
Não obstante a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LC nº 35/1979) contemplasse em seu texto a possibilidade de a lei exigir dos candidatos à magistratura - para a inscrição no concurso - e dos juízes - para fins de acesso aos Tribunais por merecimento - a habilitação em curso oficial de preparação e aperfeiçoamento (arts. 78, § 1º, 87, § 1º), a primeira experiência de escola de magistratura de âmbito nacional nasceu do movimento associativo: a Escola Nacional da Magistratura (ENM) da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Instituída há cerca de 50 anos, a ENM tornou-se a única entidade do gênero em torno da qual diversas escolas - estaduais, trabalhistas e federais - passaram a debater questões comuns às suas necessidades e novos rumos para a magistratura, tornando-se um fórum único de abrangência nacional. A ENM promoveu a realização de vários cursos no Brasil e no exterior.10
5.2. A Criação da Enfam
A Constituição de 1988 avançou e estabeleceu a previsão de cursos oficiais de preparação e aperfeiçoamento de magistrados como requisitos para ingresso e promoção na carreira (art. 93, IV, da redação anterior).
Porém, a grande inovação foi trazida pela Reforma do Judiciário, engendrada pela EC 45, de 30 de dezembro de 2004, prevendo a criação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), vinculada ao STJ. Assim dispõe o inciso I do parágrafo único do art. 105 da Constituição da República de 1988:
Art. 105 - Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
[...]
Parágrafo único - Funcionarão junto ao Superior Tribunal de Justiça:
I - a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, cabendo-lhe, dentre outras funções, regulamentar os cursos oficiais para o ingresso e promoção na carreira;
[...]
Tal comando revela-se consonante com a nova redação conferida pela mesma Emenda ao inciso IV do art. 93 da Carta Maior, no sentido de se contemplar uma escola nacional de formação e aperfeiçoamento para reconhecer e certificar cursos ministrados no país para fins de vitaliciamento de magistrados.
Confira-se o texto da Constituição:
Art. 93 - Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
[...]
IV previsão de cursos oficiais de preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados, constituindo etapa obrigatória do processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido por escola nacional de formação e aperfeiçoamento de magistrados;
[...]
A instituição da Escola Nacional ocorreu com a publicação da Resolução nº 3, de 30 de novembro de 2006(11), alterada pela Resolução nº 5, de 1º de julho de 2008(12), ambas da Presidência do Superior Tribunal de Justiça, em que foram estabelecidos, como objetivos da novel instituição, autorizar e fiscalizar os cursos oficiais para ingresso e promoção na carreira da Magistratura.
Na sessão realizada em 20 de fevereiro de 2013, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça aprovou - por aclamação - a incorporação à Enfam do nome do saudoso Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, um dos idealizadores do projeto que instituiu a Escola de Formação.
Estão inseridas as seguintes atribuições para consecução desses objetivos:
(a) definir as diretrizes básicas para a formação e o aperfeiçoamento de magistrados;
(b) fomentar pesquisas, estudos e debates sobre temas relevantes para o aprimoramento dos serviços judiciários e da prestação jurisdicional;
(c) promover a cooperação com entidades nacionais e estrangeiras ligadas ao ensino, pesquisa e extensão;
(d) incentivar o intercâmbio entre a Justiça brasileira e a de outros países;
(e) promover, diretamente ou mediante convênio, a realização de cursos relacionados com os objetivos da Enfam, dando ênfase à formação humanística;
(f) habilitar e fiscalizar, nos termos do art. 93, II, "c", e IV, e 105, parágrafo único, da Constituição da República, os cursos de formação para ingresso na magistratura e, para fins de vitaliciamento e promoção na carreira, os de aperfeiçoamento;
(g) formular sugestões para aperfeiçoar o ordenamento jurídico;
(h) definir as diretrizes básicas e os requisitos mínimos para a realização dos concursos públicos de ingresso na magistratura estadual e federal, inclusive regulamentar a realização de exames psicotécnicos;
(i) apoiar, inclusive financeiramente, a participação de magistrados em cursos no Brasil ou no exterior indicados pela Enfam;
(j) apoiar, inclusive financeiramente, as escolas da magistratura estaduais e federais na realização de cursos de formação e de aperfeiçoamento.(13)
Por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), observa-se, por um lado, a Resolução nº 159, de 12 de novembro de 2012, que incursiona no tema para regulamentar os cursos oficiais de ingresso, formação inicial e aperfeiçoamento de magistrados; por outro lado, a Resolução nº 75, de 12 de maio de 2009, que, a pretexto de regulamentar os concursos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário, cria, na verdade, inúmeras dificuldades para os diversos atores do processo seletivo.(14)
Desde a sua instituição, a Enfam - diretamente ou por acordo de cooperação - tem cumprido sua missão constitucional ao promover os mais variados cursos de formação e de aperfeiçoamento de magistrados. De dezembro de 2008 a outubro de 2012, foram oferecidos 65 cursos, que contaram com mais de 2.600 inscritos - magistrados, servidores, diretores e coordenadores das Escolas, dentre outros.
Os cursos à distância (EaD) também têm se revelado um canal com elevado potencial, mercê de oferecer uma plataforma eficiente e interativa de capacitação, possibilitando a participação daqueles que se encontram afastados dos grandes centros urbanos. Entre 2010 e junho de 2012, a Enfam oferecia 4 cursos, concluídos por 709 dos inscritos; de junho de 2012 a outubro de 2013, a quantidade saltou para 8 tipos de cursos, os quais foram concluídos por 987 dos inscritos.
Em relação ao credenciamento de cursos, entre 2008 e 2009, foram habilitados 391; porém, de janeiro a outubro de 2013, 406 novos cursos foram credenciados, com duração que varia de 16 horas/aula a 2.386 horas/aula.
6. Conclusão
Destarte, é urgente e importante pensar na formação do juiz do futuro, adequando-a às aspirações da sociedade.
O pleno desenvolvimento das escolas oficiais criadas pelos arts. 105, parágrafo único, I, e 101-A, I, da CF/88, junto ao STJ e TST, contando com a participação das escolas existentes e com as sugestões da base da magistratura, é ponto relevante no atual estágio de evolução quanto à melhor formação dos juízes brasileiros. Ressalte-se que esses são os únicos órgãos vocacionais e com assento constitucional para estabelecer políticas públicas de seleção, formação e aperfeiçoamento de juízes.
O trabalho da Enfam, nessa perspectiva, não se resume em chancelar os cursos de formação mediante uma análise meramente burocrática, mas a de empreender e formular diretrizes que tenham por foco a seleção de magistrados, as quais servirão de base para as demais escolas de formação.
Dentro de um ambiente de formação e de aperfeiçoamento, os magistrados, além de reforçarem seu conhecimento técnico e atualizarem-se acerca das inovações legislativas, poderão refletir e discutir ideias para o enfrentamento dos reais desafios do Poder Judiciário no século XXI, a partir de um enfoque multidisciplinar - e não apenas jurídico -, que valorize princípios éticos e sopese as necessidades de cada região do País.
Urge também que os concursos públicos para seleção de magistrados tenham a participação ou sejam realizados pelas Escolas de Magistratura, de modo a que o recrutamento obedeça à mesma diretriz da preparação.
Parece importante, ademais, a inserção de mecanismos de seleção que contemplem a busca dos mais vocacionados para a carreira, elementos que devem se somar ao conhecimento técnico indispensável ao exercício da profissão.
Além disso, primordial que haja um peso específico para os aspectos humanísticos da formação dos quadros da magistratura.
Igualmente relevante é conferir autonomia administrativa e financeira às Escolas de Magistratura, pois, somente com a possibilidade de planejar seus objetivos estratégicos, a magistratura ampliará o acesso dos cidadãos a uma justiça ágil, mais bem aparelhada, informatizada e, portanto, transparente e capaz de cumprir plenamente sua função social.
Notas:
(1) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Departamento de Pesquisas Judiciárias. Estudo comparado sobre recursos, litigiosidade e produtividade: a prestação jurisdicional no contexto internacional. Brasília, 2011.
(2) DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996.
(3) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução Juarez Tavares. SP: RT, 1995. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Evolução histórica da estrutura judiciária brasileira. Revista jurídica virtual. Brasília, v. 1, n. 5, set. 1999. Disponível em . Acesso em 9/11/2013. NEQUETE, Lenine. O poder judiciário no Brasil: crônica dos tempos coloniais. v. 1. Brasília: STF, 2000. NEQUETE, Lenine. O poder judiciário no Brasil a partir da independência. v. 2. Brasília: STF, 2000.
(4) CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
(5) SANTOS, Boaventura de Sousa (Dir. Científico); GOMES, Conceição (Coord.). In: O sistema judicial e os desafios da complexidade social: novos caminhos para o recrutamento e a formação de magistrados. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2013. SANTOS, Boaventura de Sousa (Coord.). In: O recrutamento e a formação de magistrados: análise comparada de sistemas em países da União Europeia. Disponível em . Acesso em: 12.11.13. STJ. Secretaria de Documentação. Subsídios à implantação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados/ENFAM no Superior Tribunal de Justiça. V. I e IV. Brasília, 2006.
(6) Introdução Crítica ao Direito, 2ª edição, Editora Estampa.
(7) SADECK, Maria Tereza (Coord.). Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões. 2005. Disponível em . Acesso em 9/11/2013. SADECK, Maria Tereza (Coord.).Magistrados: uma imagem em movimento. RJ: editora FGV, 2006.
(8) VIANNA, Luiz Werneck [et al.]. O perfil do magistrado brasileiro. Rio de Janeiro: AMB:IUPERJ, 1996.
(9) Diagnóstico das Escolas de Magistratura existentes no Brasil - revista ADV Advocacia dinâmica: seleções jurídicas, nº 10, p. 21-22.
(10) STJ. Secretaria de Documentação. Subsídios à implantação da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados/ENFAM no Superior Tribunal de Justiça. V. I e IV. Brasília, 2006.
(11) Publicada no Diário da Justiça da União de 4/12/2006, Seção 1, p. 158.
(12) Publicada no Diário da Justiça Eletrônico do Superior Tribunal de Justiça de 1º/7/2008.
(13) Art. 2º da Resolução nº 3, de 30 de novembro de 2006, alterada pela Resolução nº 5, de 1º de julho de 2008, ambas da Presidência do Superior Tribunal de Justiça.

(14) Confira-se o artigo "Deus e o Diabo" na forma de seleção de juízes. Disponível em . Acesso em 9/11/2013.

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