quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Aspectos da obrigação alimentar dos parentes colaterais

O objetivo do presente artigo limita-se a abordar os principais aspectos da obrigação alimentar entre parentes colaterais, notadamente entre tios, sobrinhos e primos. Trata-se de questão pouco discutida pela doutrina familiarista, tendo em vista a interpretação literal que é adotada para o artigo 1.697 do Código Civil, dispositivo que regula a matéria.
 
1. Introdução
 
Definem-se os alimentos como prestações devidas a uma pessoa que deles dependa para a sua sobrevivência, ou seja, para garantia do direito à vida e à existência digna. A obrigação alimentar tem por fundamento o principio da solidariedade familiar, por meio do qual são estabelecidos deveres recíprocos entre os integrantes da família.
 
Os artigos 1.694, 1.696 e 1.697, do Código Civil vigente, regulam a obrigação de prestar alimentos entre ascendentes, descendentes, cônjuges e companheiros. Prevê o artigo 1.697, de forma expressa, a obrigação alimentar entre irmãos, tanto germanos como unilaterais.
 
A celeuma surge quando nos indagamos a respeito da possibilidade de outros colaterais, além dos irmãos, serem sujeitos da obrigação alimentar, haja vista a ausência de expressa indicação pelo legislador infraconstitucional.
 
Parte considerável da doutrina[1] entende que a obrigação alimentar limita-se aos colaterais de segundo grau ( irmãos), não abrangendo os colaterais de terceiro grau (e.g: tios, sobrinhos), tampouco os parentes por afinidade (e.g: sogro, genro). Argumenta-se que, diante da ausência de expressa menção aos demais colaterais e parentes por afinidade, deve-se adotar uma interpretação restritiva dos dispositivos em comento, de tal sorte que se exclui a obrigação alimentar para os colaterais além do segundo grau.
 
Neste mesmo diapasão seguiu o julgamento do Recurso Especial n. 1.032.846 - RS, em 2009, pela 3ª Turma do STJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que ratificou ser o dever dos tios um “dever moral, porquanto não previsto em lei”.
 
 A despeito de sua larga adoção, passou-se a indagar sobre a justeza e adequação do aludido posicionamento. Tais questionamentos surgiram em razão das situações vivenciadas em nossa experiência profissional, especialmente na atuação junto à Defensoria Pública.
 
O presente trabalho abarca uma dessas experiências jurídicas, assim como busca um olhar diferenciado, em prol de uma nova vereda interpretativa para a questão, tendo por base a técnica interpretativa da ponderação de princípios.
 
 
2. O caso concreto
 
 
            Uma senhora humilde, mãe de uma criança de cinco anos, doméstica, cujos parcos rendimentos auferidos são utilizados para sustento da criança, enfrenta sérias dificuldades em face do pai displicente. A referida senhora buscou auxílio junto à Defensoria Pública para ingresso com execução de alimentos.
A ação de execução foi proposta e, após homérico esforço para localização do executado, a prisão civil foi decretada, por duas vezes; o mandado foi cumprido, sem que, no entanto, o genitor efetuasse qualquer pagamento à filha menor. Alegou em sua justificativa, de forma crível, que não é proprietário de qualquer bem móvel ou imóvel e que aufere rendimentos de valor muito baixo, insuficientes até mesmo para custeio das suas despesas pessoais básicas (alimentação e moradia).
Os avos, tanto maternos como paternos, residem em comarca distante, são idosos, sofrem de problemas de saúde e sequer auferem rendimentos fixos; apenas um dos avos recebe aposentadoria, mas no ínfimo valor de um salário mínimo, que nem ao menos cobre o custeio de seus medicamentos.
O pai faltoso não cumpre seu encargo alimentar, os avos não possuem condições materiais para auxiliar a criança e, por último, a criança não tem irmãos mais velhos. Em suma, não resta mais ninguém a quem, em tese, possa a criança se socorrer.
Por outro lado, existe uma tia, irmã de seu pai, que goza de bom padrão de vida, é mulher jovem, sadia, proprietária de dois imóveis e de uma tecelagem, com vários empregados, e que não tem filhos. Há, ainda, fortes indícios de que, em muitas oportunidades, tenha auxiliado o genitor da criança a se ocultar e a se furtar do ato citatório.
Diante de tal quadro, surge a seguinte indagação: não parece justo que essa tia seja chamada à obrigação de prestar alimentos à sobrinha menor? Moralmente, parece acertada a contribuição por parte da tia. Mas, juridicamente, seria lídimo tal pleito? Mais do que isso: nosso ordenamento jurídico poderia proporcionar uma interpretação favorável àquela senhora e, especialmente, em benefício da criança?
 
 
3. A técnica da ponderação de princípios aplicada à obrigação alimentar
 
 
A tese utilizada por muitos juristas, como modelo genérico apto a ser aplicado em todos os casos, restringe a titularidade de alimentos em razão da ausência de expressa previsão legal. Aos que a adotam, aplica-se uma interpretação literal e restritiva do rol elencado no Código Civil, de modo a se excluir a obrigação dos demais colaterais.
 
Esta é a compreensão de Yussef Said Cahali (2002, p. 709), que afirma ser
(...) pacífico na doutrina o entendimento de que a enumeração legal é taxativa, não comportando dilação para a abrangência de qualquer outra pessoa ainda que inserida na comunidade doméstica, ante o pressuposto de que a lei estabelece o círculo fechado dos titulares de direitos e obrigações alimentares, através de um elenco limitativo, e não meramente enunciativo, caracterizando-se o encargo pela sua excepcionalidade.
Contudo, uma nova interpretação se faz necessária, segundo a atualizada técnica da ponderação de princípios que, associada aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, torna-se aplicável aos casos de colisão de princípios fundamentais. A referida técnica, segundo Luís Roberto Barroso (2003, p. 117), consiste
em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis(...), especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas. A estrutura interna do raciocínio ponderativo ainda não é bem conhecida, embora esteja sempre associada às noções difusas de balanceamento e sopesamento de interesses, bens, valores ou normas.
 Neste passo, os dispositivos invocados não podem ser interpretados isoladamente, de forma genérica e restritiva, indistintamente, em flagrante menoscabo à realidade, de tal sorte que impossibilite uma solução que atenda aos ditames da justiça e que esteja em consonância com o ordenamento jurídico.
 
 Devem ser considerados, por outro lado, em cotejo com os mandamentos constitucionais (artigos 5º e 227[2]) e demais dispositivos legais (em especial o artigo 1.829[3] do Código Civil e artigo 4º[4] do Estatuto da Criança e do Adolescente), surgindo uma nova interpretação, apta a produzir efeitos no caso concreto.
 
 
4. Da possibilidade da obrigação alimentar entre parentes colaterais
 
 
O direito aos alimentos, também denominado como “crédito de amor” por Maria Berenice Dias, é um direito fundamental da pessoa que, como já mencionado, decorre do princípio da solidariedade no âmbito da família.
 
É cediço que a obrigação alimentar reveste-se de um caráter especial com relação às demais obrigações ordinárias, na medida em que tem por fim garantir a sobrevivência e a subsistência do credor, notadamente quando este é uma criança ou um adolescente, aos quais foi conferida prioridade absoluta pelo ordenamento jurídico. A relevância de tal direito é tamanha que se busca conferir, inclusive, da forma mais ampla possível, “uma flexibilidade e pluralidade dos meios executivos imaginados pelo legislador para o exato cumprimento da dívida alimentar.” (BRANDÃO LIMA, 1983, p.112).
 
Muito embora os artigos 1.696 e 1.697 do CC não tenham esmiuçado a obrigação alimentar dos demais colaterais, fazendo somente uma menção taxativa à ordem dos obrigados e ao dever de alimentar dos irmãos, não há que se falar em exclusão do encargo por parte dos demais colaterais, haja vista que a obrigação alimentar também se consubstancia com o vínculo de parentesco, conforme dispõe o próprio artigo 1.694[5], inaugural do subtítulo “Dos Alimentos”.
 
Neste tocante, repisa-se que:
Tanto na hipótese dos alimentos entre colaterais de terceiro e quarto graus, quanto no caso dos alimentos entre parentes por afinidade, o fundamento justificador da imposição é, sem dúvida, a solidariedade familiar. Para que serve um parente, senão para ser solidário com o outro nos momentos de necessidade? Frustra-se a própria fundamentação do parentesco negar o reconhecimento da obrigação alimentar em tais hipóteses. ( FARIAS; ROSENVALD.2012, p. 820).
Ademais, no magistério de Maria Berenice Dias (2007, p. 474/475), a ausência de expressa previsão dos demais colaterais é mera omissão do legislador, pois
O silêncio [da lei] não significa que os demais [colaterais] tenham sido excluídos do dever de pensionar. Os encargos alimentares seguem os preceitos gerais: na falta dos parentes mais próximos são chamados os mais remotos, começando pelos mais ascendentes, seguidos dos descendentes. Portanto, na falta de pais, avós e irmãos, a obrigação passa aos tios, tios-avós, depois aos sobrinhos, sobrinhos-netos e, finalmente, aos primos... Atribuindo a Constituição à família os mais amplos deveres (CF 227), aí reside o dever de alimentos de todos para com todos... Não parece crível, ante o princípio da razoabilidade que deve consubstanciar as relações, quisesse o legislador, de forma cartesiana, afastar tios, sobrinhos e primos do encargo alimentar, parentes esses que são herdeiros e que possuem legitimidade para receber bens do de cujus.
Digno de nota que outros doutrinadores filiam-se a esta tese. À guisa de exemplo, indica-se Fernanda Tartuce ( 2012, p. 178) , Flávio Tartuce e José Fernando Simão ( 2013,p. 429).
 
Por outro lado, no que tange ao Direito Sucessório, o legislador optou por mencionar expressamente a vocação hereditária dos colaterais até quarto grau (art. 1829, inciso IV e 1.839, ambos do Código Civil). Tais dispositivos, quando em cotejo com os artigos 1.696 e 1.697 do mesmo diploma, aparentemente, destoam.
 
 A despeito da advertência de alguns doutrinadores sobre a distinção entre Direito de Família e o Direito das Sucessões, Rolf Madaleno (2008, p.674), de forma muito lúcida, tece a seguinte crítica:
Estranha conexão de valores que chama os parentes mais distantes a suceder, mas os dispensa do dever de alimentar pelo fato de o direito sucessório não guardar interação direta com o direito familiar, embora o Direito Civil seja visto como um sistema único, que interage e se interpenetra e cuja leitura deve ser procedida à luz da sua interpretação constitucional, sem esquecer, como faz Maria Helena Diniz, representar o direito das sucessões um ‘aspecto patrimonial post mortem do direito de família’. Ou seja, o direito sucessório e o direito familiar pertencem ao mesmo sistema, tanto que o próprio artigo 1.698 do Código Civil manda guardar a ordem de sucessão na obrigação alimentar, não se tratando, portanto, de restringir os direitos sucessórios, mas sendo o caso de ampliar os direitos familiares, para permitir também possa a pensão alimentícia ser eventualmente cobrada daquele parente colateral igualmente vocacionado a herdar, pois se pode e está habilitado a receber, porque realmente haveria de estar impedido de doar, como se solidariedade e parentesco familiar fosse uma via de mão única (...)
Por fim, há de se lembrar do alvitre de Ana Maria Gonçalves Louzada (2005, p. 17), ao asseverar que “a possibilidade de obrigação alimentar por parte dos tios, sobrinhos e primos, decanta apologia à própria vida, que por vezes, só se tornará viável ante a receptividade do julgador a trilhar novos caminhos”.
 
 
5. Considerações Finais
 
 
A obrigação de alimentos entre parentes existe como decorrência do princípio da solidariedade familiar. O objetivo é a garantia da vida e dignidade da pessoa que não possui meios para sua subsistência.
 
Em que pese a formação de uma posição majoritária que nega a obrigação por parte de colaterais acima do segundo grau e parentes por afinidade, tal não se afigura adequado e proporcional a todos os casos, especialmente por resultar de uma técnica de interpretação defasada, ao passo em que se apega à literalidade dos dispositivos em comento.
 
A aceitação da responsabilidade alimentar subsidiária é uma decorrência lógica do sistema jurídico , que surge a partir da adoção de uma interpretação ponderativa e sistemática, dando-se prioridade à proteção dos direitos fundamentais no caso concreto.
 
Dessa forma, o direito fundamental a alimentos deve ser preservado em primeiro lugar em relação a qualquer outro direito, uma vez que garante a vida, a integridade física e a existência digna da pessoa. Acrescente-se ainda a necessidade de preservação do melhor interesse da criança e adolescente.
 
Ademais, a referida interpretação dirime a incoerência entre o Direito de Família e o Direito das Sucessões, ambos aspectos intrínsecos do mesmo Código Civil, pois , se os colaterais herdam por ocasião do falecimento, parece-nos lógico que também sejam compulsados a prestar alimentos. Se de um lado há o direito à herança, de outro deve haver a contrapartida alimentar.
 
Por derradeiro, em análise mais acurada, pode-se afirmar que o direito a alimentos por parte dos colaterais, excepcionalmente, é forma de se concretizar o direito fundamental à vida, exigindo-se a coragem e sensibilidade do julgador para, diante da dificuldade do caso, adotar posicionamento diferente e inovador.
 
 
Bibliografia:
 
BARROSO, Luis Roberto. A nova interpretação constitucional dos princípiosin Dos Princípios Constitucionais, São Paulo: Malheiros, 2003, p.117.
 
BRANDÃO LIMA, Domingos Sávio. Alimentos do cônjuge na separação judicial e no divórcio, Cuiabá: UFMT, 1983, p.112.
 
CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 709/710.
 
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, 4ª edição, São Paulo: RT, 2007, p.474/475.
 
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5, direito de família, 26ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 638
 
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família, 8ª ed, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 543.
 
LOBO, Paulo. Direito civil: famílias, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p.382/389.
 
LOUZADA, Ana Maria Gonçalves. Da obrigação alimentar dos avós, irmãos, tios, primos e sobrinhos in Família e Jurisdição II. Bastos, Eliene Ferreira; da Luz, Antônio Fernandes [coords.]. Belo Horizonte: Del Rey, 2005,p. 17.
 
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 674.
 
TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 178.
 
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil, vol. 5: direito de família, 8ª ed., São Paulo: Método, 2013, p. 429.
  
 [1] Cf: CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 709/710; DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5, direito de família, 26ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 638; LOBO, Paulo. Direito civil: famílias, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p.382/389; GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família, 8ª ed, São Paulo: Saraiva, 2011, p. 543; VENOSA, Sílvio de Salvo.Direito civil: direito de família, vol. 6, São Paulo: Atlas, 2009, p.368.
[2] Na dicção do art. 227 da Constituição Federal: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
[3] Trata-se de artigo que inclui os colaterais para efeitos sucessórios.
[4] Dispõe o art. 4° da Lei 8069/90: “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”
[5] Assim dispõe o Art. 1.694, em seu caput: “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.” ( grifo nosso).

FONTE: IBDFAM

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