quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

O Direito Urbanístico e sua Interpretação: Método e Pressupostos

RESUMO: O artigo pretende examinar o ambiente em que se produzem os operadores paramétricos de interpretação e aplicação das normas jurídico-urbanísticas, com a localização do tema no âmbito político, jurídico, econômico e social. Essa indicação dos pontos referenciais que sustentam a interpretação do direito urbanístico, em uma moldura metodológica que tem por ponto de partida a luta por reconhecimento, atende às necessidades de uma pré-compreensão da temática, situando os operadores do direito.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Urbanístico. Luta por Reconhecimento. Economia. Ordem Urbanística. Pluralismo Radical.
1. Uma questão recorrente para os operadores do direito que lidam com as questões urbanas é a dos padrões ou diretrizes a serem seguidos na interpretação do direito urbanístico, pois esses indicativos constituem pressupostos necessários na aplicação das normas urbanísticas.
A multiplicidade de concepções teóricas e ideológicas sobre o fenômeno urbano levou à diversidade correspondente de modos de leitura e compreensão do ordenamento jurídico incidente; devendo ser salientado, ademais, que essa abundância de modelos teóricos prospera em um ambiente intelectual marcado pela derrocada dos esquemas tradicionais de apreensão da ordem jurídica. Nesse panorama, se não houver clareza quanto aos elementos necessários na interpretação do direito urbanístico, há sempre o perigo do surgimento de novas ortodoxias, cristalizando mais uma vez a interpretação das normas jurídico-urbanísticas em torno de um modelo fechado, incompatível com o dinamismo da realidade urbana contemporânea.
Em tal cenário, para evitar o risco antes mencionado, é importante situar o direito urbanístico, destacando a sua integração na realidade econômica, na totalidade do ordenamento jurídico, no âmbito da teoria política democrática e no campo da interpretação das normas jurídicas. Esclarecer o pano de fundo da ordem jurídico-urbanística brasileira afigura-se indispensável para a delimitação do contexto em que são produzidos os operadores paramétricos das respectivas normas jurídicas. A matéria é vasta e demanda estudo rigoroso, pelo que o presente texto não tem outro propósito que não o de fornecer alguns apontamentos para futuras pesquisas, limitando-se a algumas notas para posterior desenvolvimento, sem maiores pretensões.
2. O direito urbanístico é produto de uma dinâmica social complexa. Aliás, poucas áreas ou ramos do direito positivo exemplificam de forma tão clara o papel decisivo da luta por reconhecimento na constituição do ordenamento jurídico quanto o direito urbanístico. Registra-se aqui a referência, como ponto de partida, à conhecida argumentação de Axel Honneth, que, partindo de uma atualização de uma leitura de Hegel, coloca essa luta por reconhecimento [Kampf um Anerkennung] no núcleo da lógica moral dos conflitos sociais (1).
Sem a necessidade de ingressar em exame aprofundado da obra de Honneth, dadas as finalidades do presente texto, suas dimensões exíguas e, mais do que isso, o caráter preparatório do argumento, cumpre apenas destacar que o modelo teórico por ele construído, com fundamento no dado central da luta por reconhecimento, leva a uma teoria social de caráter normativo. Embora a meta do autor seja identificar a gênese de certos processos sociais e, assim, contribuir para o estudo das patologias sociais, está claro que esse modelo teórico gera ampla gama de desdobramentos, possibilitando variadas linhas de pesquisa.
Entre as possibilidades de investigação que se abrem à pesquisa e ao questionamento, especialmente aquelas que dizem com a produção e interpretação do direito, destaca-se a interessante noção, trazida por Honneth, de um "excedente de validade" [Geltungsüberhang]. Trata-se de conceito que, se bem examinado e explorado, pode render reflexões de vital importância para a compreensão da normatividade e de suas raízes no âmbito da referida gramática moral dos conflitos sociais.
Com efeito, afirmam Hartmann e Honneth (2):
"Em consequência, a sociedade ocidental do capitalismo deve ser compreendida como uma ordem social altamente dinâmica, cuja capacidade de transformação de si mesmo procede não só dos imperativos de aproveitamento permanente de capital, mas também do excedente de validade institucionalizado das novas esferas de reconhecimento que nasceram com essa ordem; apoiando-se nos ideais morais em que estas se baseiam constitutivamente, os integrantes da sociedade podem sempre expor e reclamar novamente direitos legitimáveis que vão mais além da ordem social estabelecida."
Esse "excedente de validade institucionalizado" encontra-se presente na superfície do direito urbanístico, sendo evidente nos institutos mais modernos, relativos à regularização fundiária, à participação popular, ao alargamento das franquias democráticas, etc. Há uma tensão moral subjacente que impele à interpretação construtiva, ampliadora, do material normativo; conduzindo também à concepção e institucionalização de novos direitos, contidos in nuce no ordenamento jurídico-urbanístico. Esse é o primeiro e mais importante dado a compor a moldura metodológica para a interpretação do direito urbanístico.
3. Após esse primeiro passo, há que prosseguir em direção ao real, pisando o terreno da concretude das relações materiais. Assim, como produto da dinâmica social, o direito urbanístico não está alheio à relação difícil que historicamente se estabeleceu no Brasil entre a sociedade civil e a autoridade estatal (3) : embora a diversidade de visões sobre o tema, ensejando distintos matizes de exposição e interpretação, os construtos teóricos versando sobre a interpretação do direito urbanístico tendem a oscilar dialeticamente entre esses dois polos. Assumindo o risco de uma leitura reducionista da literatura existente, pode-se identificar, de um lado, um campo de reflexão dominado pela presença e atuação do poder estatal, primariamente nas figuras conceituais do planejamento urbano e da gestão urbana. No polo oposto, é possível avistar uma tendência que identifica a produção do moderno direito urbanístico brasileiro como uma conquista da sociedade civil organizada, fruto de uma conjuntura de lutas sociais.
Na vertente polarizada pela atuação estatal, o direito urbanístico é, em primeiro lugar, um assunto do poder público, que se serve de suas normas para concretizar comandos administrativos em face da coletividade urbana. A ação do poder público é condicionada pela atividade do planejamento, concebida como um processo técnico capaz de projetar o desenvolvimento urbano e solver com antecedência os problemas da cidade. Por isso mesmo, a gestão urbana é pensada como práxis administrativa de forte caráter técnico. Trata-se de uma visão dos assuntos urbanos que se poderia denominar tecnocrática, em razão da ênfase nos aspectos técnico-estatais e na instância decisiva constituída pelos planejadores urbanos (4).
No outro extremo, o direito urbanístico brasileiro é figurado por ângulo distinto, sendo visto como a resultante de uma sequência de lutas sociais ligadas à temática das lutas sociais (como é o caso, por exemplo, da Reforma Urbana). A ênfase é dada aos agentes da sociedade civil, especialmente aos movimentos sociais urbanos, fazendo com que o enfoque predominante na interpretação do direito urbanístico esteja na afirmação de direitos sociais, especialmente aqueles de natureza difusa ou coletiva (com reflexo na temática do acesso à justiça). O móbil da produção e interpretação do direito urbanístico está radicado na sociedade civil, de forma endógena, em seus agentes coletivos de organização e transformação social.
As repercussões judiciais na interpretação do direito urbanístico vacilam em torno do espaço teórico constituído entre esses extremos. Todavia, é claro que o direito urbanístico não se exaure nas alternativas assim postas, pois, se é composto pelo acúmulo juridicamente positivado de lutas sociais, também representa parcela do plexo de interesses de toda a gama restante de agentes sociais, com interesses eventualmente - ou necessariamente - contrapostos, como, por exemplo, o poder público e a ampla parcela não organizada da cidadania. É necessário, pois, encontrar um ponto além - ou acima - das "visões" em conflito, superando dialeticamente os polos em disputa. Parece claro que o eixo axial, o centro de gravidade do direito urbanístico, não pode residir na tecnocracia, nem da celebração de lutas sociais. Que fazer?
4. A definição do ambiente cultural necessário à compreensão do direito urbanístico brasileiro deve partir do elemento fundamental da realidade que se propõe a reger normativamente: a constatação de que as normas jurídico-urbanísticas operam na conjuntura específica do regime econômico do capitalismo. A Carta de 1988 é explícita em assegurar a livre-iniciativa e a propriedade privada como elementos basilares da ordem econômica nacional (conforme preceitos contidos no art. 170, caput e inciso II, da Constituição Federal). É fundamental atentar no fato de que o direito urbanístico atua sob o regime do capital, vale dizer: opera na composição das questões urbanas que, em maior ou menor grau, são permeadas pela lógica de acumulação capitalista.
Como na sociedade capitalista há um "(...) maior disciplinamento e ordenação dos poderes do Estado, inicialmente no apoio da estrutura geral de acumulação existente (...)" (5), é claro que o ordenamento legal obra em inteira consonância com o sistema econômico prevalente. Desse modo, as normas jurídicas, inclusive as de caráter urbanístico, estão decisivamente comprometidas, em última instância, com a reprodução da ordem econômica, sem que essa constatação afaste a relativa autonomia conceitual da esfera jurídica em face de outros setores da dinâmica social.
É por isso que a Constituição Federal fala em ordem econômica: trata-se de um recorte essencial da realidade social, da parcela de organização da realidade que diz com os meios de produção e com a lógica de reprodução da estrutura material da sociedade. A ordem econômica referida no texto constitucional nada mais é do que a fração vital da ordem social em sentido lato, i.e., da regulação social, cujas relações materiais são objeto de descrição e conformação pelo ordenamento jurídico.
5. Não é por acaso que as disposições relativas à ordem econômica e ao ordenamento urbanístico encontrem-se agrupadas sob a mesma denominação - "Da Ordem Econômica e Financeira" - na Carta Constitucional vigente. A política urbana figura ao lado dos princípios gerais da atividade econômica, da política agrícola e fundiária e do sistema financeiro nacional. Há uma imbricação crucial entre ordem econômica e ordenamento jurídico-urbanístico que alcança a própria terminologia legal, indicando uma conexão que deve ser considerada na interpretação do direito urbanístico.
O ordenamento jurídico-urbanístico brasileiro está estruturado em torno de certos conceitos fundamentais, que estabelecem relações matriciais no interior do sistema jurídico. Uma dessas noções basilares é o conceito de ordem urbanística. Embora a atribuição de sentido e a identificação do conteúdo material da locução em exame demandem uma operação hermenêutica complexa, na qual devem ser sopesados vários elementos, a importância do conceito é evidente, pois é a porta de entrada do direito urbanístico no universo da tutela processual coletiva, fazendo a ligação da questão urbana com o rol dos bens, direitos e interesses transindividuais (6).
Sabe-se que o conceito em questão possui uma dupla face, uma dimensão descritiva e uma dimensão prescritiva: a ordem urbanística é tanto o ordenamento ("o conjunto orgânico de imposições vinculantes (são as 'normas de ordem pública' a que alude o art. 1º, parágrafo único [do Estatuto da Cidade]), que condicionam positiva e negativamente a ação individual na cidade") quanto um estado ("um estado de equilíbrio, que o conjunto dos agentes envolvidos é obrigado a buscar e preservar")(7). Além disso, o conceito faz a integração do conjunto de conteúdos do direito urbanístico (centrados com frequência no exercício de uma determinada função administrativa) com a temática da sustentabilidade, conforme diretriz específica da lei (no art. 2º, inciso I, da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001), para a promoção do equilíbrio entre as funções sociais da cidade.
Deve ser enfatizada essa representação da ordem urbanística como um estado de equilíbrio (vale dizer: um determinado estado da ordem econômica e social), pois essa descrição indica com clareza meridiana o papel do direito urbanístico na reprodução da ordem capitalista vigente (sem impugnar, por óbvio, os aprimoramentos que façam com que o sistema social funcione de modo mais eficiente, pois não se trata de um equilíbrio qualquer, mas de uma ordem social aperfeiçoada que tenha a sustentabilidade como um de seus eixos). A ordem urbanística é, pois, uma parcela importante da estrutura mesma da realidade, um fragmento da ordem econômica e social que é protegida pela legislação e que ordena teleologicamente o texto constitucional.
6. Prosseguindo no exame da conformidade da ordem urbanística com a ordem econômica propugnada pela Constituição Federal, cumpre dar alguns passos no campo da denominada análise econômica do direito (law and economics), que consiste na aplicação de métodos oriundos da teoria da economia para a pesquisa de problemas jurídicos. A investigação econômica do direito aborda temas, como o estudo das instituições (new institutional economics), eficiência na alocação de recursos,externalities, custos de transação, etc. Cuida-se de ferramenta interessante para o entendimento das questões ligadas à eficácia prática dos direitos, à relevância das instituições para o funcionamento regular do mercado e à garantia da cidadania.
Segundo essa perspectiva, há uma preocupação em fazer com que a ordem jurídica esteja apta a atuar para corrigir as falhas do mercado e de governo. Em razão de sua integração estrutural no bojo da ordem econômica, o ordenamento jurídico-urbanístico apresenta um valor inestimável para a análise econômica do direito. Com efeito, ao "definir os limites do direito de propriedade e as condições de exercício dos poderes regulatórios do Estado, o direito urbanístico configura o quadro institucional em que opera a política urbana". Por isso, a "redução das falhas de mercado e de governo depende, portanto, dos princípios e institutos do direito urbanístico" (8).
Como se pode verificar, a redução das falhas do mercado imobiliário e da política urbana praticada pelo governo (com a correção das ineficiências existentes no cenário econômico urbano) apresenta-se como um objetivo do direito urbanístico congruente com a posição ocupada por esse ramo do ordenamento jurídico no contexto do sistema capitalista. A finalidade é justamente alcançar o estado de equilíbrio antes mencionado, para que resulte no funcionamento ótimo da ordem econômica (e, em consequência, da ordem urbanística). Sublinha-se essa condição para demonstrar, mais uma vez e de modo cabal, a plena integração da legislação urbanística no âmbito do complexo econômico-político que caracteriza a sociedade brasileira.
7. Comprovada definitivamente a relação de coerência entre o ordenamento jurídico-urbanístico vigente, pelo exame do regime econômico constitucional, da posição topológica da política urbana na Constituição Federal e pela caracterização do direito urbanístico pela análise econômica, é necessário avançar, promovendo a forçosa articulação entre o reconhecimento do contexto econômico que atua o ordenamento jurídico e a condicionante necessária de interpretação e operação da ordem legal constituída pela democracia política, que serve de quadro institucional para toda a discussão.
O percurso que levou à identificação do direito urbanístico como componente perfeitamente integrado na ordem econômica tem justamente esse caráter preparatório, servindo de base à inquirição sobre determinadas características de cunho jurídico-político da ordem urbanística. Além disso, a exposição anterior teve o propósito de aprestar a questão relativa à concepção de democracia capaz de lidar com as tensões que atravessam o ambiente urbano (e, em consequência, afetam a interpretação da legislação pertinente).
Essa indagação sobre os lineamentos do direito urbanístico e sua relação com as teorias da democracia é crucial para afastar em definitivo o risco do retorno velado de uma perspectiva tecnocrática. Com efeito, a remissão do debate jurídico à metodologia econômica e a positiva caracterização da ordem urbanística como um segmento privilegiado da ordem econômica convidam à assunção de fundamentos interpretativos alinhados com o aprimoramento do mercado e com a correção das suas ineficiências. Nesse ponto, corre-se eventualmente o perigo de olvidar a tensão permanente que existe entre os mecanismos de mercado e o funcionamento de um regime político permeado pela premissa majoritária.
8. Para fugir a esse risco é que, como antes dito, impõe-se certa definição do perfil jurídico-político do direito urbanístico, reafirmando, nesse percurso, sua pretensão à autonomia relativa dentro do discurso científico. Essas são questões relevantes, e que, por certo, não têm a ambição de encontrar respostas nestas parcas linhas. Entretanto, alguma aproximação ao tema é necessária, até porque a extrema contemporaneidade manifestada nos contornos peculiares da ordem urbanística brasileira remete à necessidade de uma compreensão atualizada da teoria democrática, para adaptá-la às exigências da cidadania no momento presente.
A autonomia do direito urbanístico é evidente, só sendo possível explicar a resistência a essa ideia como circunstância de natureza ideológica, tendo em vista que a agenda do ordenamento jurídico-urbanístico está estruturada em torno de conflitos sobre a terra urbana e das relações que sobre ela incidem (9). Os dois campos teóricos com os quais os críticos pretendem vincular a ordem urbanística não (mais) possuem essa capacidade de absorção temática: o "guarda-chuva" conceitual do direito administrativo não consegue sustentar a especificidade que permeia a realidade urbana, encontrando-se ainda preocupado com antigos debates; enquanto o direito ambiental está mergulhado em uma pauta própria, alinhada com a defesa do espaço natural, o que estabelece um determinado viés em relação à questão social.
É preciso reconhecer no direito urbanístico e em sua pauta de conteúdos, de modo determinante, um caráter essencialmente conflituoso e fragmentário, colado a um panorama de disputas ideológicas em torno do mercado imobiliário urbano e, simultaneamente, de afirmação coletiva de direitos sociais. É um espaço de conflitos conceituais e práticos, uma arena de luta marcada pela "ponderação jurídico-subjectiva de pressões", na feliz expressão do doutrinador lusitano (10). A partir desses sinais distintivos, e tendo em conta a natureza dos institutos que compõem o seu eixo estruturante, cumpre alojar o direito urbanístico na grande árvore do direito público, perfilhando os princípios gerais correspondentes (11).
9. Essas características do direito urbanístico mostram-se compreensíveis perante a moldura da democracia contemporânea. Em uma quadra histórica em que a democracia parlamentar (constituída segundo a herança do liberalismo europeu do pós-guerra) apresenta sinais de esgotamento, é preciso buscar respostas no âmbito da teoria da democracia, pesquisando e elaborando modelos teóricos que possam dar conta da emergência de novos atores e novos foros de debate e deliberação(12). Nesse passo, é necessário inscrever a dimensão do conflito no próprio cerne de um modelo teórico que sustente as práticas democráticas que emergem na contemporaneidade, articulando-as com o sentido da produção jurídica.
O confronto crítico com as diversas concepções de democracia (democracia liberal, pluralismo clássico, democracia representativa, etc.) leva a uma atenção ao modelo teórico do pluralismo contemporâneo ou radical, no qual o fato crucial da luta política (ou seja, da dimensão do conflito) tem um papel central e uma função integradora que é decisiva para uma sociedade pluralista (como são as sociedades ocidentais pós-liberais). O reconhecimento da condição agonística como uma dimensão inescapável da estrutura social constitui um ganho teórico irrenunciável, pondo diante dos ativistas e dos operadores do sistema jurídico-político a exigência da reflexão sobre instituições que possibilitem canalizar os antagonismos, moldando-os para espaços decisórios em um contexto democrático e plural.
Na formação de instituições que permitam o exercício do pluralismo em sua totalidade, o ordenamento legal exerce uma função decisiva, conformando as relações jurídicas em linhas democratizantes. Contudo, mais importante do que o simples delineamento de instituições é a reflexão critica por parte dos agentes que operam suas engrenagens. O problema do aprofundamento da democracia é uma questão de filosofia política, postulando um novo modo de pensar o poder estatal, o direito e a sociedade. O desafio consiste na criação de um ambiente cultural radicalmente democrático que atravesse a sociedade, penetrando as relações públicas e privadas e moldando as instituições em sua totalidade (13).
Quanto ao direito urbanístico, é claro o valor de sua participação na introdução de uma forma radicalmente plural e democrática de compreender a ordem jurídica. O desafio específico no campo da ordem urbanística consiste na afirmação de institutos jurídicos que reconheçam o conflito essencial sobre os bens imobiliários urbanos, seu uso, sua gestão e seu entorno, e que possibilitem o aprendizado de novas e múltiplas formas de prática democrática no cotidiano. Com isso, mantidas as fronteiras da legalidade, mostra-se possível complementar os institutos basilares da democracia representativa.
10. Cumpre esboçar algumas conclusões, a título de arremate.
Os pontos sucessivamente abordados têm o desígnio de compor o ambiente em que se produzem os operadores paramétricos de interpretação e aplicação das normas jurídico-urbanísticas. Em razão disso é que houve a necessidade de localizar o tema no âmbito político, jurídico, econômico e social, com ampla indicação dos pontos referenciais trazidos no contexto de uma "pré-compreensão específica jurídica e de teoria jurídica" (14). Pré-compreensão da mais absoluta importância: sendo um direito um produto cultural, a tradição cultural e as tendências de desenvolvimento da cultura são os pressupostos da operação da compreensão. Afinal, estamos desde sempre - ao contrário dos fatos naturais - imersos nos fenômenos sociais em observação, movendo-nos no domínio da circularidade hermenêutica.
O primeiro dado é o de que o direito urbanístico, à semelhança de outros processos sociais, se estabelece no contexto da luta por reconhecimento. O componente moral do conflito social indica caminhos que impelem à interpretação ampliativa dos institutos que positivam o progresso social. Não apenas a compreensão do direito se dá de forma construtiva e alargada, mas novos direitos também são concebidos a partir desse excedente de validade, estabelecendo-se uma lógica de institucionalização da cidadania.
Depois, examinando o contexto cultural que circunda o direito urbanístico, vários outros dados foram constatados: (a) a necessidade de ruptura do dualismo na interpretação do direito urbanístico; (b) a constatação de que as normas jurídico-urbanísticas operam na conjuntura específica do regime econômico capitalista; (c) a representação da ordem urbanística como um estado de equilíbrio, indicando o papel do direito urbanístico na reprodução da ordem capitalista vigente (ainda que o paradigma do equilíbrio seja apenas um dos modelos de compreensão do funcionamento do capitalismo); (d) que o objetivo do direito urbanístico, segundo a perspectiva da análise econômica do direito, aponta para a redução das falhas do mercado imobiliário e da política urbana; (e) que há uma tensão estrutural entre os mecanismos de mercado e o funcionamento de um regime político permeado pela premissa majoritária; (f) que o direito urbanístico tem um caráter essencialmente conflituoso e fragmentário, vinculado a um cenário de disputas em torno do mercado imobiliário urbano e, simultaneamente, da afirmação coletiva de direitos sociais; (g) que o desafio específico no campo da ordem urbanística, na perspectiva do pluralismo radical, consiste na afirmação de institutos jurídicos que reconheçam o conflito essencial que atravessa a realidade urbana, possibilitando o aprendizado de novas e múltiplas formas de prática democrática.
Esses elementos fundamentais formam o pano de fundo da atividade interpretativa no campo do direito urbanístico. Afastar-se desses pressupostos de pré-compreensão das normas pode levar a uma concepção ilhada do contexto real em que se desenvolve a hermenêutica do direito posto. Diante do caráter fundamentalmente dinâmico do processo social urbano e da ordem jurídica associada à realidade urbana, não se pode refletir acerca da questão urbana com conceitos estáticos, ante o perigo de ensejar o congelamento indevido das categorias de análise e a formação de modelos teóricos fechados.
Assim, há o risco, por um lado, de cair no fetichismo da norma, desconsiderando-se o dinamismo do processo social subjacente à produção e interpretação do direito; de outro lado, há a tentação de afirmar um modo de compreensão que escape aos limites definidos do sistema jurídico, rompendo com as premissas advindas do domínio da realidade e perdendo a conexão com o universo hermenêutico de que participam os demais operadores.
Por trás desses riscos, espreita uma velha armadilha muitas vezes vista na dinâmica social: escapar ao jugo sufocante de velhas tradições para, logo depois, em uma atmosfera de confusão conceitual, cair sob o domínio de novas ortodoxias. O intérprete que compreender esse panorama - e estiver disposto a enfrentar os desafios da contemporaneidade - tem o dever de se acautelar contra esse perigo, empenhando seu labor na produção hermenêutica de um direito urbanístico atualizado. Essa é a tarefa inescapável de nossos dias.
Referências Bibliográficas
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Notas
(1) Com efeito, ao tratar da obra hegeliana do período de Jena, diz Honneth: "Hegel defende naquela época a convicção de que resulta de uma luta dos sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade uma pressão intrassocial para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade; trata-se da pretensão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade, inerente à vida social desde o começo na qualidade de uma tensão moral que volta a impelir para além da respectiva medida institucionalizada de progresso social e, desse modo, conduz pouco a pouco a um estado de liberdade comunicativamente vivida, pelo caminho negativo de um conflito a se repetir de maneira gradativa" (HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: 34, 2003. p. 29-30).
(2) HARTMANN, Martin; HONNETH, Axel. Paradojas del capitalismo. In: HONNETH, Axel. Crítica del agravio moral: patologías de la sociedad contemporánea. Edición de Gustavo Leyva, Introducción de Miriam Mesquita Sampaio de Madureira. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica/Universidad Autónoma Metropolitana, 2009. p. 392. Traduziu-se.
(3) Sobre a relação entre Estado e sociedade civil, consultar: BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. 3. ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; especialmente a discussão contida nas páginas 49-52.
(4) Tecnocracia, no caso, compreendida como "sistema de organização política e social fundado na supremacia dos técnicos", sendo o tecnocrata aquele que "busca apenas soluções técnicas ou racionais para os problemas, sem levar em conta aspectos humanos ou sociais" (HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa/Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 2.683).
(5) HEILBRONER, Robert L. A natureza e a lógica do capitalismo. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1988. p. 146.
(6) BRASIL, Luciano de Faria. O conceito de ordem urbanística: contexto, conteúdo e alcance. In: Revista do Ministério Público-RS, n. 69, Porto Alegre, AMP/RS, 2011, p. 157-177.
(7) SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais (art. 2º). In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal 10.257/2001). 3. ed. atual. de acordo com as Leis ns. 11.673, de 08.05.08, e 11.977, de 07.07.09. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 54.
(8) PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2010. p. 71.
(9) FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do direito urbanístico no Brasil. In: VALENÇA, Márcio Moraes (Ed./Org.). Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.
p. 59-60.
(10) ANTUNES, Luís Filipe Colaço. Direito urbanístico: um outro paradigma: a planificação modesto-situacional. Coimbra: Almedina, 2002. p. 69.
(11) SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 145-179.
(12) Sobre o tema, consultar: CUNNINGHAM, Frank. Teorias da democracia: uma introdução crítica. Trad. Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2009.
(13) "What we need is a hegemony of democratic values, and this requires a multiplication of democratic practices, institutionalizing them into ever more diverse social relations, so that a multiplicity of subject positions can be formed through a democratic matrix. It is in this way - and not by trying to provide it with a rational foundation - that we will be able not only to defend democracy but also to deepen it." (MOUFFE, Chantal. The return of the political. London, New York: Verso, 2005. p. 18)

(14) MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes do direito. Trad. Peter Naumann e outros. São Paulo: RT, 2007. p. 223.

Fonte: LEXMAGISTER

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