quarta-feira, 30 de julho de 2014

O Seguro Garantia e a Cobertura Adicional Trabalhista: é lícita a exigência do trânsito em julgado?

No exercício da atribuição que lhe confere o artigo 36, alínea b, do Decreto-Lei nº.73/1966, a Superintendência de Seguros Privados (“Susep”) editou a Circular nº. 477, de 2013, para tratar do Seguro-Garantia de Obrigações Contratuais[1], divulgando as condições padronizadas para cada modalidade.
Em complemento à garantia de performance, que tem por escopo garantir a prestação de um serviço, a construção de uma obra ou a fabricação de um produto, a Circular viabiliza a contratação de Cobertura Adicional para Verbas Trabalhistas e Previdenciárias (“Cobertura Adicional”), tanto em contratos celebrados com a Administração Pública - na forma do inciso II, § 1º, art. 56 da Lei 8.666/93 -, quanto em contratos entre particulares.[2]
A Cobertura Adicional, quando oferecida como complemento à garantia deperformance em um contrato celebrado com a Administração Pública, tem por objeto garantir ao órgão público o reembolso dos prejuízos que este sofrer com a inexecução das obrigações trabalhistas de seu contratado.
De natureza adicional, complementar e facultativa, sua execução está atrelada à futura e eventual existência de ações judiciais trabalhistas e previdenciárias nas quais o Segurado (contratante) seja demandado e, por decisão judicial definitiva, isto é, transitada em julgado, veja-se obrigado a pagar verbas inadimplidas pelo contratado em relação aos funcionários deste.
Depreende-se disso que a Cobertura Adicional não é aplicada na esfera extrajudicial, não podendo ser acionada sequer por decisão definitiva em processo administrativo, diferente do que ocorre com a cobertura principal, relativa à execução do contrato licitado.
O mercado segurador noticia que muitas são as reclamações e críticas feitas pela Administração Pública às condições padronizadas pela Susep. A principal delas reside no fato de a cobertura depender da ocorrência do trânsito em julgado. Veja-se trecho da Circular Susep 477/2013:
Cobertura Adicional para Verbas Trabalhistas (...)
  1. Objeto
    “1.1 Esta cobertura adicional tem por objeto garantir exclusivamente ao segurado, até o limite máximo de indenização, o reembolso dos prejuízos comprovadamente sofridos em relação às obrigações de natureza trabalhista e previdenciária de responsabilidade do tomador oriundas do contrato principal, nas quais haja condenação judicial do tomador ao pagamento e o segurado seja condenado subsidiariamente e que os valores tenham sido pagos por este, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, bem como do trânsito em julgado dos cálculos homologados ou ainda nas hipóteses de acordo entre as partes com prévia anuência da seguradora e consequente homologação do Poder Judiciário” (grifos nossos).
É fato que a Administração Pública não avoca, automaticamente, a responsabilidade pelos encargos trabalhistas e previdenciários inadimplidos pelo contratado, sendo vedado ao administrador público pressupor a responsabilidade da Administração ante o mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada:
Lei Federal 8.666/93
Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Ninguém desconhece, ademais, que no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº. 16, ajuizada pelo então Governador do Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal pronunciou-se pela constitucionalidade do § 1º do art. 71 da Lei 8.666/93, em decisão com eficácia erga omnes e vinculante[3]:
EMENTA: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art., 71§ 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995 (STF, ADC 16, Relator Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 24/11/2010, DJe-173).
A Administração Pública somente se responsabiliza pelo passivo trabalhista deixado pela empresa com quem contratou se não fiscalizar adequadamente a execução do contrato.
Daí a menção, pela Susep, no objeto da cobertura adicional, à responsabilidade subsidiária dos órgãos públicos e, consequentemente, a garantia de atos ilícitos involuntários dos seus agentes na fiscalização do contrato somente se houver condenação judicial transitada em julgado.
O Tribunal Superior Trabalho, atento às discussões havidas no plenário do Supremo Tribunal Federal, prontamente modificou seu Enunciado 331 para assentar que a Administração Pública somente pode ser responsabilizada se participar da relação processual e constar, consequentemente, do título executivo judicial:
Enunciado 331 do TST
Contrato de Prestação de Serviços - Legalidade
(...)
IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000).
V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada (grifos nossos).
O trânsito em julgado é indispensável à caracterização do sinistro, pois, a obrigação garantida somente será constituída com o pronunciamento definitivo, pelo Judiciário, reconhecendo a responsabilidade subsidiária da Administração.
Em resumo, o objeto desta garantia adicional não é assegurar o cumprimento do contrato principal, entre Segurado e Tomador, mas resguardar a esfera patrimonial da Administração Pública, que por falha involuntária de seus agentes na fiscalização de um contrato pode ser condenada subsidiariamente ao pagamento das verbas trabalhistas e previdenciárias que, a princípio, seriam devidas pelo Contratado. Não parece haver ilegalidade na expressão “trânsito em julgado”, inserida pela Susep em seu ato normativo.
Outra questão, não menos polêmica, constitui saber se é constitucional exigir do contratado o oferecimento de cobertura adicional para garantir atos ilícitos praticados pela Administração Pública. Esse ônus é imputado ao contratado (pagador do prêmio) e reflete no preço das obras licitadas. Consequentemente, aumentam-se os gastos públicos. Onera-se o particular. Mas deixemos essa discussão para outra oportunidade.

[1] A Circular Susep 477/2013 ab-rogou a Circular Susep 232/2003.
[2] Para os fins pretendidos por este artigo, vamos nos ater aos contratos celebrados com a Administração Pública.
[3] Lei Federal 9868/99, art. 28 Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Rafael Bertramello
Professor e Advogado.
Pós-Graduando em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – LFG. Advogado.

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