segunda-feira, 29 de junho de 2015

Proposta de hibernação do Novo CPC por mais cinco invernos: tudo não passou de um mal entendido

Em matéria de Direito, na comunidade jurídica, a regra é a divergência; o consenso, a exceção. O debate, quando enriquecedor, é salutar e até necessário. Mas a divergência que torna manifesta apenas uma anomalia psíquica, apequena o autor da manifestação e, dependendo do seu status, gera intranquilidade e insegurança jurídica.
Como integrante da Comissão de Juristas nomeada pela presidência do Senado Federal com a incumbência de elaborar o anteprojeto do novo Código de Processo Civil, presenciei alguns ataques de egocentrismo patológico. Não me refiro aos membros da Comissão. Que Deus me livre dessa blasfêmia.
A patologia, de um modo geral, ataca de forma mais intensa pessoas que não participaram de um projeto ou, por uma ou outra razão, se viram excluídas de um debate. O mais comum é que se caracterize pelo sentimento segundo o qual “se não participei, sou contra”. Que todos vistam ou que ninguém use a carapuça que estou a alinhavar. Mas que ninguém se ofenda com este que vos escreve e que, como todo mundo, de louco, gênio e santo tem um pouco. Tudo a depender das circunstâncias.
Deixando a psicanálise de lado, minha segunda especialidade, vamos ao novo Código de Processo Civil, que sequer manifestou seus efeitos e já querem hiberná-lo por cinco tenebrosos invernos. Relembro que a tessitura do anteprojeto começou em junho de 2010. Naquela época bradavam alguns pela desnecessidade de um novo Código. Acostumados às pontuais reformas que transformaram o CPC/73 numa colcha de retalhos – muitas vezes assimétricos –, diziam que um novo Código não fazia o menor sentido. Apresentada a primeira versão do anteprojeto, advogados reclamaram que estavam transformando o processo numa juristocracia. De parte dos juízes, diziam que esse era um Código de advogados, tamanho o corporativismo e privilégios concedidos à classe que orgulhosamente, a partir da minha aposentadoria como desembargador no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, passei a integrar.
Entre mortos, feridos e alguns invejosos, depois de cinco anos de tramitação nas duas Casas Legislativas, o novo Código foi sancionado e publicado. É claro que as divergências não cessaram. Aliás, estão só começando. Porque não há espaço para registrar os embates situados no conteúdo, fico apenas na periferia. A começar pelo dia que o Código entrará em vigor.
Tal como Arnaldo César Coelho, pensei que a regra fosse clara. Esqueci-me de que estamos no Brasil e aqui também as regras claras dão margem a infindáveis discussões. Dispõe o art. 1.045 do novo CPC que “este Código entrará em vigor após decorrido 01 (um) ano da data de sua publicação oficial”. Supus que o prazo em ano contasse em ano, tenha esse lapso de tempo 365 ou 366 dias. Afinal, segundo a Lei que define o ano civil (Lei nº. 810/49), “considera-se ano o período de 12 (doze) meses contados do dia do início ao dia e mês correspondentes do ano seguinte”. Se a publicação se deu em 17/03/2015, o mesmo dia e mês correspondentes do ano seguinte é 17/03/2016. Simples assim. Como o Código estabelece a sua entrada em vigor “após decorrido um ano da data da sua publicação oficial”, não tinha dúvidas de que a nova legislação começaria a “valer” a partir do dia 18/03/2015. Para corroborar minha certeza, consultei a Lei Complementar 95/98, a qual prescreve que a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subsequente à sua consumação integral. Olha aí, pessoal. O novo CPC entrará em vigor no dia 18/03/2016.
Mas tem gente contando o prazo, que é de um ano, em dias – se podemos complicar, para que simplificar? –, daí por que, até agora, termos três possíveis datas para entrada em vigor da nova legislação processual: 16, 17 e 18 de março de 2015. Bem que no último debate do qual participei no Senado, eu avisei e quem avisa amigo é – no meu caso, da clareza e segurança. Coloquem o dia certo para a lei entrar em vigor. Nada desse negócio de um ano ou doze meses, porque nem todos sabem contar e muitos fingem que não sabem ler. Porque no Código Civil y Comercial de La Nación Argentina consta expressamente que “La presente ley entrara en vigência el 1º de agosto de 2015”, o Parlamento brasileiro preferiu oferecer combustível para os cegos que não ver. Oh, birra.
Mas depois da suposta articulação do Ministro Gilmar Mendes para que o Parlamento brasileiro prorrogue por cinco anos o prazo para a entrada em vigor do novo CPC – suposta porque não acredito que tenha ocorrido –, essa discussão perde todo o sentido. A prevalecer a preocupação do Ministro com a falta de estrutura do STF para fazer o juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários, o Código só entrará em vigor em 2021. Acreditasse na possibilidade de prorrogação da vacatio, estaria a sugerir que, passadas as festas natalinas de 2020, nos preocupássemos com o dia em que se daria a entrada em vigor. Pelo menos um ponto contaria a nosso favor. O ano de 2021 não é bissexto. Assim, caso não arrumem outra, a divergência quanto ao dia da entrada em vigor, ficaria restrita aos dias 17 ou 18 de março do longínquo 2021. Quem viver verá.
Como não participei das reinações do Ministro e também me incluo entre os que padecem do mau do egocentrismo patológico, permito-me discordar da hibernação proposta. E assim o faço com base em argumento racional, tido num lampejo de lucidez.
Na elaboração do anteprojeto, uma das preocupações da Comissão foi com a racionalidade. Eu e os demais membros da Comissão – 11 juristas no total – julgávamos irracional fazer um mesmo serviço duas vezes. Assim se passa com o juízo de admissibilidade dos recursos na vigência do CPC/73. A verificação dos pressupostos de admissibilidade ocorre no juízo de origem e também no tribunal destinatário do recurso. Isso é o que ocorre com a apelação, com o recurso extraordinário (RE) e com o recurso especial (REsp). E mais, com relação aos recursos extraordinários lato sensu, esse duplo trabalho é gerador de mais trabalho. Isso porque, na grande maioria dos casos, a parte recorrente não se conforma com a denegação do RE ou do REsp na origem e então interpõe agravo. Ocorre de o relator do recurso no STF ou no STJ decidir monocraticamente o agravo, confirmando a inadmissibilidade e, então, um novo recurso (agravo interno ou regimental) é interposto. Enfim, no mínimo mais dois recursos se originam do fato de o juízo de admissibilidade ser feito duas vezes. Foi por isso que se retirou o tal filtro, feito pelos tribunais de segundo grau. Na verdade nem se trata de filtro, mas sim de uma grossa peneira, pela qual um recurso sempre passará, seja porque foi admitido o RE ou REsp ou porque, ante a inadmissão, o agravo do art. 544 (CPC/73) foi interposto. Fazer um juízo de admissibilidade no tribunal destinatário do recurso é mais econômico, racional e, portanto, inteligente.
Porque somos dados a divergir, talvez alguns discordem do critério de racionalidade, mas ninguém quer passar atestado de burrice. Se uma proposta vem com o selo comprobatório da inteligência, dificilmente encontrará opositores, a não ser entre vozes que não merecem audição. Talvez por isso, no que se refere à concentração do juízo de admissibilidade no órgão competente para julgar o recurso, voz alguma se levantou. Falam que os Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli estariam articulando para postergar para depois das Olimpíadas de 2020 a vigência do novo CPC. Lei alguma terá tido vacatio legis tão longeva. Prefiro acreditar que tudo não passou de um mal entendido.
Sei que muitos vão discordar de mim. Mas esse é o carma do jurista: afirmar para ser confrontado e às vezes até vilipendiado. Tenho fundadas razões para acreditar que na verdade os Ministros estão articulando para antecipar a entrada em vigor do novo Código. Despidos de preconceitos com os hermanos, querem seguir o exemplo da Argentina, que antecipou, via lei, obviamente, a entrada do Código Civil y Comercial em cinco meses – de 1º de janeiro de 2016 para 1º de agosto de 2015. Nessa linha, sugiro o dia 25 de dezembro de 2021, data em que se comemora o nascimento de Cristo e na qual também poderemos comemorar o nascimento do Código Benjamin Button, porque já vai nascer velho.
Vamos às razões pelas as quais me mantenho firme na crença de que a articulação é pela redução do prazo da vacatio legis. A concentração do juízo de admissibilidade dos RE no STF significará redução de recursos, e não aumento, como inadvertidamente entendeu o redator da matéria publicada no jornal Folha de São Paulo do dia 23/06/2015. Ainda que redução não houvesse, é mais inteligente fazer um serviço uma vez só. E ainda que houvesse aumento da carga de trabalho no STF, seria ela decorrente de um mero deslocamento de tarefas dos tribunais de segundo grau para o Supremo. Ora, se a justiça é nacional, o que importa se é o tribunal de Minas, o TRF da 5ª Região ou o STF que está a realizar a tarefa? Como reconheceu o Ministro Ricardo Lewandowski – é ele quem fala em nome do STF e, assim, se realmente articulação houvesse com o Deputado Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, a conversa seria de presidente para presidente –, o Supremo tem condições de proceder ao juízo de admissibilidade dos recursos extraordinários sem a companhia dos tribunais de segundo grau. E o presidente do STF acredita tanto nessa capacidade que não participou dessa famigerada articulação. Sintomático para a compreensão do mal entendido é que nenhum outro tribunal do país se queixou da sobrecarga e também não se tem notícia de mobilização para propor a hibernação do novo CPC. Fosse verdadeira a noticiada articulação, bem como as mal compreendidas verdades expostas para tanto, decerto que veríamos caravanas chegando ao Congresso Nacional em defesa da prorrogação da vacatio legis. No entanto, não se tem notícia de que o STJ tenha se mobilizado para tanto. Igualmente, não se tem notícia de que os Tribunais de Justiça dos Estados e do DF, bem como os TRF’s tenham procurado os presidentes das Casas Legislativas em busca da propalada prorrogação. E também esses tribunais serão alcançados pela nova lei. Antes o STJ contava com a peneira – por onde, forçosamente, tudo passa – dos TJ’s e TRF’s e agora, sozinho, terá que fazer o mesmo serviço que já vinha sendo feito. O mesmo pode-se dizer dos TJ’s e TRF’s, que não mais contarão com a peneira dos juízes de primeiro grau quando do recebimento da apelação.
Dizem alguns amigos que sou adepto da teoria da conspiração. Nesse caso, acho que tenho fundadas razões para acreditar que tudo não passa de mais uma campanha para desmoralizar o STF. Suspeita-se que a verdadeira articulação é dos presos na operação lava jato. Receosos do teor de futuro julgamento, querem desmoralizar o Judiciário, começando pela sua cúpula. Não é crível que o STF não esteja preparado para proceder ao juízo de admissibilidade dos recursos por ele julgado, se assim procedem os Ministros desde a criação daquele altaneiro tribunal, juntamente com a proclamação da República. Ainda que houvesse incremento de serviço, não é crível que o órgão máximo do Judiciário brasileiro, que tem independência financeira e administrativa e, ainda, poderes para, com uma canetada, requisitar juízes e servidores de outros tribunais, não consiga se preparar no prazo de seis anos –cinco anos de tramitação do projeto do Código somado ao período de vacatio legis – para essa nova competência.
Autores já publicaram livros sobre o novo CPC – eu inclusive. As editoras já jogaram fora os livros velhos e investiram vultosas somas em novas edições. Operadores do Direito, professores e alunos já atualizaram as suas bibliotecas. As faculdades de Direito já estão a ensinar em conformidade com o novo Código. E todos se preparam para a aplicação da nova Lei, inclusive bancas de concursos públicos. Oh, por conta da tal notícia da prorrogação, candidatos já estão a impugnar editais de concursos. Os tribunais do país já gastaram muito dinheiro na atualização de magistrados e servidores. Hoje, 24 de junho de 2015, dia de São João, encontro-me em Goiânia para debater com os magistrados do TRT da 18ª Região a aplicação do CPC/2015, um dos mais modernos e avançados do mundo. Não acreditasse no mal entendido ou não fosse eu adepto da teoria da conspiração, diria que essa noticia da prorrogação trata-se de ato temerário, causador de intranquilidade e insegurança e, via de consequência, de grande desserviço ao nosso país. À vista de tanta corrupção, tanta patifaria, aos homens sérios cabe apenas praticar a economia do bem.
Mesmo tendo participado da elaboração do novo CPC, não me furto de criticar alguns de seus dispositivos. Mas ninguém em sã consciência – abstraídas eventuais escaramuças pessoais e intensas dores de cotovelo – pode negar que o Código de 2015 é infinitamente melhor do que o de 1973 e que será capaz de contribuir para a mitigação do principal mal que atinge a máquina judiciária: a morosidade. Na tentativa de calar os renitentes, resumo minha construtiva crítica afirmando que se trata de um Código mais inteligente.
Superado o mal entendido, não há razão para intranquilidade e insegurança. Continuemos, pois, a preparação, de modo que em 18/03/2016 estejamos prontos para aplicar o novo Código de Processo Civil, contando sempre com a capacidade intelectual e gerencial dos Ministros do STF.
ELPÍDIO DONIZETTI, Jurista e advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal responsável pela elaboração do anteprojeto do Novo Código de Processo Civil.

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